Tiburcio Utuy pensou ter visto medo no rosto do ex-ditador.
Um juiz tinha acabado de determinar que o ditador militar, General Efraín Ríos Montt, agora com 86 anos, deveria ser julgado por genocídio e crimes contra a humanidade cometidos durante seu governo, na década de 1980, decisão que Utuy e outros sobreviventes maias da guerra civil de 34 anos na Guatemala se reuniram no tribunal para ouvir de viva voz.
"Ele não vai sofrer como nós sofremos, mas ficará assustado", Utuy disse em seu vilarejo na montanha alguns dias depois de a decisão ter sido proferida no final de janeiro. "E quem sabe ele passe um pouquinho do seu tempo na prisão."
Utuy, 71 anos, é testemunha num julgamento que poucos consideravam possível.
Porém, o sistema judiciário da Guatemala começou uma transformação. Numa demonstração de vontade política, promotores estão levando aos tribunais casos de direitos humanos há muito tempo adormecidos, armados com provas que as vítimas e seus advogados coletaram meticulosamente ao longo de mais de uma década - tanto para prestar testemunho quanto para fazer o julgamento.
"Está sendo enviado o recado mais importante do Estado de direito, o de que ninguém está acima da lei", disse Claudia Paz y Paz, procuradora-geral, que muitos daqui consideram uma das forças mais importantes por trás dessa mudança.
Nos 17 meses em que Ríos Montt controlou a Guatemala, antes de ser derrubado por um golpe em agosto de 1983, seus soldados intensificaram uma campanha de terra arrasada pelos planaltos maias começada pelo predecessor, em 1981, para expulsar guerrilheiros esquerdistas. Os militares marcharam sobre vilarejos, torturando, estuprando e matando quem não conseguisse fugir. Eles queimaram casas e plantações e mataram os rebanhos.
Em 1999, uma comissão da verdade das Nações Unidas concluiu que ataques sobre grupos indígenas específicos equivaliam a genocídio. "O objetivo dos criminosos era matar o maior número possível de membros do grupo", afirmou o relatório da comissão.
De acordo com os investigadores, a guerra ceifou acima de 200 mil vidas ao longo de mais de três décadas antes dos acordos de paz de 1996. Eles identificaram o grupo ixil, cujos integrantes vivem em vilas recobertas de névoa aqui no departamento de El Quiche, como a tribo maia que mais sofreu.
Entre 70 e 90 por cento das aldeias ixil foram arrasadas durante o período mais sangrento da guerra, entre 1981 e 1983. Segundo a comissão da verdade, cerca de sete mil membros desse grupo foram mortos e, estima-se, mais de 60 por cento de seus integrantes foram forçados a fugir para as montanhas, onde muitos morreram de frio, fome e doenças, ou foram assassinados quando o exército os bombardeou pelo ar.
Todavia, o relatório não resultou em ação. Os militares manipulavam o poder nos bastidores por meio de presidentes eleitos maleáveis. Ríos Montt se tornou legislador, o que lhe garantiu imunidade jurídica contra ações judiciais e, como presidente do Congresso, em 2000, manobrou para colocar aliados no judiciário.
Os promotores engavetaram as investigações. Quando tentavam agir, juízes paralisavam os processos, levando anos para julgar pedidos para liberar documentos militares ou levar apelações ao longo de vários tribunais.
Paz y Paz, 46 anos, ex-juíza ligada a grupos de direitos humanos, foi indicada em dezembro de 2010 e não perdeu tempo, apresentando acusações de crimes de guerra contra vários membros do alto comando militar. Ela conseguiu as primeiras condenações de oficiais acusados pelos piores massacres.
Depois que o mandato de Ríos Montt no Congresso terminou no começo de 2012, chegou a vez dele. Um ano mais tarde, o juiz Miguel Ángel Gálvez derrubou diversas moções da defesa para rejeitar o caso e determinou o prosseguimento do julgamento.
A ação judicial marca uma das primeiras vezes em que um tribunal nacional confiável julga um antigo líder acusado de genocídio, disse Paul Seils, vice-presidente do Centro Internacional para a Justiça de Transição, Nova York.
"Sem sombra de dúvida, a América Latina abre o caminho em termos de autoridades nacionais tentando processar crimes significativos", disse Seils, citando julgamentos na Argentina, Chile e Peru.
Os advogados de Ríos Montt basearam a defesa apelando ao consagrado argumento militar segundo o qual os massacres foram excessos ordenados pelos comandantes de campo. Segundo eles, Ríos Montt desconhecia os atos.
Coronel reformado, Mario Mérida, que agora chefia o Instituto Nacional para Estudos de Segurança Estratégica, sustentou que o julgamento tinha motivações políticas e sofria a influência da opinião pública internacional.
"Não existia nenhuma política institucional contra qualquer grupo étnico", garantiu Mérida, embora tenha reconhecido que os militares nunca puniram soldados pelos massacres. Segundo ele, as ações do exército na década de 1980 eram uma "campanha psicológica para que as pessoas abandonassem as guerrilhas" porque os rebeldes alegavam ter construído uma base de apoio entre os maias.
O presidente Otto Pérez Molina, ex-general que serviu na região ixil em 1982 e 83, disse em entrevista recente a um jornal espanhol que Ríos Montt deveria ser julgado por "abusos e excessos inegáveis", mas não por genocídio.
Pérez Molina foi eleito em novembro de 2011 e seu passado militar gerou especulações de que ele poderia demitir Paz y Paz ou dificultar suas investigações. Contudo, segundo ela, o presidente demonstrou respeito pela independência dos promotores.
No começo, as vítimas tinham medo de falar. Isolados pelo idioma e pela discriminação, desalojados pela guerra e traumatizados pelos massacres, eles tentaram reconstruir as vidas nas vilas das quais fugiram.
A comissão da verdade das Nações Unidas rompeu esse silêncio. Outras provas surgiram: antropólogos forenses vêm exumando os corpos há 20 anos, usando roupas e outros artefatos para identificar os restos em covas rasas. Somente uma pequena parcela das vítimas foi identificada, mas as exumações oferecem provas arrepiantes de que as vítimas não eram combatentes.
Fredy Peccerelli, diretor da Fundação de Antropologia Forense da Guatemala, disse que as equipes desenterraram corpos depositados ao redor de uma igreja, catalogaram o número de crianças em sepulturas coletivas e registraram relatos dos sobreviventes.
"É o terror", afirmou Peccerelli. "É uma estratégia para garantir que todos os seus opositores tenham medo de você. E não apenas agora, mas tenham medo para sempre."
Mais informações vieram com a divulgação dos arquivos do governo dos Estados Unidos, que deixaram de ser secretos segundo o Arquivo de Segurança Nacional, em Washington. De acordo com a documentação, diplomatas norte-americanos e as agências de inteligência sabiam que o exército guatemalteco estava conduzindo massacres.
Quando os primeiros casos ficaram paralisados, os advogados se voltaram à Suprema Corte da Espanha, que reivindicou jurisdição universal em casos de crimes contra a humanidade. Vítimas e testemunhas viajaram a Madri para depor perante um juiz espanhol.
Utuy estava entre eles. Em 1982, ele fugiu para as montanhas com a esposa e filhos depois que soldados destruíram Xix duas vezes e mataram aqueles em que botaram as mãos, incluindo uma vizinha grávida. "Quando vi que cortaram a barriga dela, eu comecei a chorar", ele afirmou.
A família sobreviveu ao bombardeio e ao fogo das metralhadoras de helicópteros do exército, mas Utuy foi capturado enquanto procurava comida. Durante oito meses, ele foi torturado e interrogado em bases militares. Por fim, Utuy foi liberado, com balas zunindo enquanto deixava a base.
Almudena Bernabeu, advogada do Centro para Justiça e Responsabilização, grupo de defesa dos direitos humanos de São Francisco, afirmou que o testemunho de Utuy poderia ajudar a corroborar um documento militar conhecido como Operação Sofia. Segundo grupos de ativistas, ele descreve a campanha contra o grupo ixil e esclarece a cadeia de comando até Ríos Montt. Francisco Dall'Anese, diretor da Comissão Internacional Contra a Impunidade na Guatemala, grupo jurídico da ONU, afirmou que o julgamento de Ríos Montt desencadeou um movimento que dificilmente será detido.
"Começar o julgamento de Ríos Montt é como encher um tanque de gasolina para quem vinha pressionando há anos e pensava tratar-se de uma causa perdida. Agora, essas pessoas viram a luz no fim do túnel e não vão parar."
The New York Times
Julgamento de ex-ditador mostra judiciário com nova força na Guatemala
Juiz determinou que o general Efraín Ríos Montt deveria ser julgado por genocídio e crimes contra a humanidade
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