Na ponta norte de Cabul, seguindo por uma estrada cravada de buracos gigantescos, fica um lugar seguro que tem todas as características de uma prisão: grandes muros de pedra com arame farpado no alto, policiais gritando em walkie-talkies, visitantes ignorados andando de um lado para outro à espera de um sinal de esperança.
Os moradores daqui o chamam de Guantánamo dos Carros.
Atrás destes muros estão milhares de carros, caminhões, vans, motocicletas e até bicicletas, alinhados em um purgatório veicular depois de serem apreendidos pelas autoridades de trânsito de Cabul. Motivos que jogaram os carros na cadeia: curvas proibidas à esquerda, violações de estacionamento, envolvimento em batidas leves no para-choque e, talvez o mais notório: não pagar suborno.
- Eu espero há dois meses para pegar minha van de volta - disse Sayed Wahid, cuja busca para recuperá-la, depois de ter sido confiscada por causa de uma carteira internacional vencida, o levou a essa exaustiva odisseia por nada menos do que seis departamentos diferentes do governo.
- Como você acha que eu me sinto em relação ao governo? - questiona.
A experiência de Wahid está longe de ser única. Alguns moradores de Cabul descrevem seus esforços que lhes tomaram muitos meses e muito dinheiro para liberar seus veículos, apenas para reaver um chassis há muito tempo despido de suas partes. Plenamente consciente das histórias de horror, a maioria das pessoas daqui faz um enorme esforço para evitar qualquer interação, seja qual for, com o departamento de trânsito.
E, se considerada como um estudo de caso sobre a confiança no governo, a Guantánamo dos Carros tem apenas um prognóstico sombrio para oferecer.
- Neste país não há estado de direito. Os incidentes de trânsito são a menor parte - disse o professor Wadir Safi, diretor do Centro Nacional Independente de Formação Jurídica.
Naturalmente, experiências ruins com a polícia não são exclusivas do Afeganistão. Mas os riscos aqui estão entre os maiores: a comunidade internacional investiu mais de uma década de esforços intensos e auxílio para construir um sistema de justiça responsável no Afeganistão, sendo crucial para o governo atrair a atenção dos esforços para longe do Talibã e dos senhores de guerra locais.
Apesar disso, a maioria dos afegãos ainda diz ter pouca fé que seu governo possa aplicar a lei honestamente. As leis são aplicadas de maneira desigual, punindo aqueles que menos podem pagar e sendo irrelevantes para os que têm dinheiro e poder. A Transparência Internacional recentemente listou o Afeganistão como o terceiro país mais corrupto no mundo, depois da Somália e da Coreia do Norte.
Por sua vez, os policiais - os rostos mais onipresentes do governo para os afegãos diariamente - insistem estar apenas fazendo seu trabalho.
- Se alguém fizer uma curva proibida, o que devemos fazer, dar-lhes uma cesta de flores? Aqueles que infringem a lei tipicamente reclamam da polícia - comentou o General Asadullah Khan, chefe do departamento de trânsito em Cabul.
Nas ruas de Cabul, porém, o pessimismo prevalece. Quando se trata de acidentes, os motoristas prudentes tentam, da melhor forma possível, resolver a disputa no local, bem antes dos oficiais chegarem.
E os acidentes estão cada vez mais comuns. A população de Cabul explodiu durante a última década, e a prefeitura estima que haja 650 mil veículos disputando o direito de passagem em um conjunto de ruas estreitas, construídas para acomodarem cerca de 30 mil deles. O trânsito traiçoeiro da cidade, os buracos onipresentes e a sobrecarga de pedestres criaram um nó de poluição e frustração. Instituições internacionais tentaram ajudar a cidade com gerenciamento de tráfego, mas o progresso é difícil de ser encontrado.
A estratégia principal da força policial para diminuir o excesso de veículos tem sido apreender motoristas sem carteira, e não mais apenas multá-los, mas mandá-los para a cadeia por até seis meses. Automóveis sem registro apropriado são confiscados e apreendidos - e enviados a Guantánamo.
O trânsito se tornou um grande negócio em Cabul, e a cidade arrecada cerca de US$ 40 milhões por ano em taxas e multas, de acordo com Khan.
Entre os braços mais notórios da divisão de trânsito está a Unidade de Incidentes, que passa pela cidade de acidente em acidente, determinando de quem é a culpa e tirando carros errantes das estradas.
- A Unidade de Incidentes agora é famosa - reconheceu Sidiq Sidiqqi, porta-voz do Ministério do Interior, que supervisiona a polícia.
Ele até tinha sua própria experiência para contar. Balançando a cabeça, ele falou de como outro carro havia recentemente batido em seu veículo do governo. Ele rapidamente chamou o departamento de trânsito até a cena, contou. Mas ambos os motoristas rapidamente se tornaram inquietos, avisando-o que se a Unidade de Incidentes viesse, haveria problemas. O motorista do outro veículo rapidamente pagou o prejuízo e seguiu seu caminho.
- Nós estamos tentando colocar programas e políticas em ordem para arrumar as coisas. Nós temos o financiamento. Nós só temos um treinamento precário - disse Sidiqqi.
Quanto ao famoso pátio de carros apreendidos, Khan, chefe do departamento de trânsito, conhece o apelido amplamente difundido do lugar. Mas ele se arrepia e insiste em usar o nome oficial: Estacionamento do Departamento de Trânsito de Cabul.
Seja qual for o nome, está lotado. Todos os anos, cerca de 3 mil carros, 3 mil motocicletas e um número indeterminado de bicicletas são confiscados e levados para a Guantánamo dos Carros, de acordo com os números do governo. Khan não tinha números prontamente disponíveis de quantos são liberados, mas sugeriu que visitássemos o lote e perguntássemos às pessoas o que elas achavam do sistema. Uma garoa constante acompanhava uma multidão de proprietários de carros deprimidos durante uma visita recente ao lote da apreensão. Os homens olhavam fixamente para a meia dúzia de policiais parados atrás dos portões, tomando chai e conversando casualmente.
Fileiras de veículos preenchem o terreno em vários estágios de degradação - milhares dos onipresentes Corollas de Cabul, SUVs blindados, alguns caminhões de transportes paquistaneses multicoloridos. Centenas de motocicletas alinham as extremidades do lote de lama. Uma massa desfigurada de metal fica no meio da área, do tamanho de vários campos de futebol americano, onde motocicletas arruinadas ficam empilhadas. Uma bicicleta confiscada está enfiada no topo da pilha.
Os homens que esperavam do lado de fora tinham histórias parecidas. Estacionamento proibido. Documentos vencidos. Discussão com os agentes de trânsito. Eles esperaram algum tempo, desde um dia até mais de dois meses, para reaver seus veículos. Confusos com o sistema complexo, a maioria apenas implorava à polícia para que devolvesse seus carros. Sem sorte.
Em novembro, Wahid havia levado sua van de Kunduz até Cabul, quando foi parado em um ponto de inspeção na capital. Seus documentos e os do carro estavam em dia, mas uma licença para cruzar fronteiras internacionais, embora não necessária para aquela viagem em específico, havia expirado.
Por um momento, segundo ele, ele teria considerado subornar o oficial. Ele se arrependeu a cada dia nos últimos dois meses por não ter feito isso.
Wahid pegou o ônibus de volta para o norte para separar sua papelada. Mas quando ele voltou a Cabul, as autoridades do Ministério das Relações Exteriores não a aceitaram, pois não acreditavam que fosse autêntica. Então ele pediu ajuda ao departamento de trânsito, mas isso também não deu resultado.
Esforçado por natureza, Wahid tentou uma abordagem multifacetada. Ele visitou o Ministro do Interior, a polícia de Cabul e o Parlamento, onde ele achou um membro prestativo de Kunduz, que recebeu cartas pedindo às autoridades que liberassem seu veículo. Quando isso não deu certo, ele solicitou novamente sua carteira internacional de habilitação ao governo.
Agora, depois de gastar 1.600 dólares em sua difícil jornada, ele diz que ainda não está certo de estar mais perto de conseguir seu carro de volta.
Ele permanece em Cabul, pegando dinheiro emprestado para viver e fazendo a longa viagem de ônibus para ver sua família nos finais de semana. Apesar de tudo isso, de alguma forma, ele parece, sobretudo, sereno. Ele simplesmente não espera que o governo trabalhe por ele.
- O que eu posso dizer? Isso nem é um governo - disse enquanto puxava os bordados de sua roupa.