Omdurman, Sudão - Mary Nyekueh Ley consegue resumir sua vida em poucas palavras.
- Minha vida é uma maldição - afirmou.
Seu primeiro marido foi ferido em uma batalha e morreu em seus braços. Seu segundo marido a espancava. Dois de seus filhos morreram em decorrência de um dos problemas mais fáceis de solucionar: diarreia. E agora ela é uma sudanesa do sul vivendo no norte, uma estranha de pele escura com cicatrizes tradicionais em todo o seu rosto, tentando educar dois filhos e duas filhas.
Pior do que isso, a habilidade que lhe garante o sustento é a fabricação de bebidas alcoólicas caseiras, um crime grave no Sudão islamista e que já fez com que ela fosse presa 10 vezes e recebesse dezenas de chibatadas.
- Olhe. Foi a polícia - ela comentou, apontando para as faixas de cicatrizes brancas que subiam e desciam de suas canelas.
Sem dúvida, a situação de Ley é extrema, mas não é exclusiva. Centenas de milhares de sudaneses do sul que passaram a maior parte de suas vidas no norte agora se encontram entre dois mundos, suas vidas abaladas por uma divisa tumultuada que recentemente dividiu o país em dois. Em julho, depois de décadas de guerrilha, o Sudão do Sul se separou do Sudão e formou sua própria nação.
A maior parte dos sudaneses do sul ficou em êxtase. A festa em Juba, a capital do Sudão do Sul, não parou por dias. Mas para os sulistas que vivem do lado norte da fronteira, como Ley, cujas mãos cheias de calos e rachaduras contam sua própria história de sofrimento e trabalho pesado, a alegre separação ajudou a agravar sua miséria.
Por causa da inimizade entre o Sudão e o Sudão do Sul, os dois países estão enviando tropas para a fronteira e se preparando para outro grande conflito que pode se espalhar por toda a região - não haverá dupla cidadania para os sulistas que vivem no norte e não se sabe qual será a situação dos nortistas que vivem no sul. O governo sudanês afirma que irá cancelar a cidadania de todos os sulistas a partir de abril.
Se eles quiserem permanecer no Sudão, deverão solicitar um visto, uma autorização de trabalho, documentos de residência e afins. Será extremamente difícil, senão impossível, que pessoas pobres e analfabetas, como Ley, que muitas vezes não possuem nada que comprove quando e onde nasceram, consigam esses documentos.
Mesmo se alguém nasceu no norte, como Georgie, o filho de 9 anos de Ley, as restrições são as mesmas. Caso uma pessoa pertença a um grupo étnico do sul - incluindo os nuer, o grupo de Ley - essa pessoa é considerada uma sulista.
Diante de tudo isso, mais de 350 mil sulistas se mudaram recentemente do norte para o sul, de ônibus ou de barco, como parte de uma enorme migração promovida pela ONU e pelo governo do Sudão do Sul. Muitos outros estão preparados para fazer o mesmo.
- Eu estou apenas esperando os documentos da minha aposentadoria. Eu vou morrer onde devo morrer - afirmou Palegido Malong, um homem idoso do sul que trabalhou como guarda em um hospital de Cartum, a capital do Sudão.
E assim como Ley, que acredita ter cerca de 45 anos, ele também descobriu que muitas pessoas estão morrendo no sul agora. Foi mais ou menos em dezembro de 2010 - Ley afirmou, com um sorriso, que não é muito boa com datas - que ela e seus filhos embarcaram em um ônibus em direção a sua terra natal, um lugar chamado Mankien, ao sul da fronteira entre os países.
Ela disse que estava empolgada em participar do referendo pela independência realizado em janeiro de 2011 e que estava tudo certo para que ela voltasse a viver com seu povo. Mas, certa manhã, uma milícia de criminosos invadiu Mankien durante a onda de violência e revoltas que recentemente varreu as comunidades do sul. Soldados do Sudão do Sul correram para enfrentá-la.
O confronto durou dois dias e quando Ley saiu de sua cabana, ela se deparou com dezenas de corpos sobre a grama - homens, meninos e meninas.
- Nós íamos todos ser dizimados - afirmou.
Ela também ficou incomodada com a falta de desenvolvimento do sul - e não que ela esteja cercada de modernidade aqui em Omdurman, cidade vizinha de Cartum. Ela vive em uma casa com paredes de barro e com imagens de Jesus na parede perto de sua cama. Mas em Mankien não há ruas asfaltadas nem eletricidade, e há poucos poços e poucas escolas.
O Sudão do Sul é um dos países mais pobres do planeta, onde 83% da população vive em cabanas com teto de palha e onde uma menina de 15 anos tem mais chance de morrer durante o parto do que de terminar a escola. Alguns meses depois de chegar a Mankien, Ley e seus filhos pegaram o ônibus de volta para Omdurman, optando pelo menor dos males. Mas eles não foram bem recebidos.
Sua filha de 14 anos, Nyapay, contou que, certa vez no mercado, seus dedos foram esmagados por um árabe que pisou intencionalmente em cima deles. Ley contou que as pessoas lançavam olhares estranhos e lhe falavam coisas ruins como "Porque você ainda está aqui, se nós estamos separados?". Ela sempre se sentiu como uma cidadã de segunda classe no norte, mas agora é oficial.
Ley precisa lutar para alimentar os filhos com qualquer coisa além de wal wal, um prato insosso feito com sorgo e água. Ela não tem nenhum parente nas proximidades para ajudá-la. Seu primeiro marido, um homem alto e magro chamado Walkat, era guerrilheiro e, quando ele foi morto, ela foi entregue para o irmão de Walkat, que batia em seus filhos com frequência e lhe dava socos no rosto.
Ela fugiu para Cartum há cerca de 20 anos e desde então fabrica e vende bebidas alcoólicas ilegais.
- Eu só sei fazer isso - comentou Ley, enquanto olhava distraidamente para as ferramentas de seu ofício - um jarro grande de plástico azul e um conjunto de garrafas de refrigerante amassadas.
Certa vez, ela passou seis meses na prisão, e nem sabe dizer quantas chibatadas já recebeu da polícia, conforme manda a lei islâmica do Sudão. Ley adora seus filhos e, em uma tarde recente, serviu um copo de água fresca para Georgie e sorriu para ele quando o menino lhe ofereceu o copo de volta. Mas seus olhos ficaram tristes quando surgiu o assunto das mensalidades escolares.
- Eu estou indo embora - afirmou.