O jogo clandestino patrocinado por migrantes estrangeiros está disseminado pela Região Metropolitana. Em 2023, o Grupo de Investigação da RBS (GDI) mostrou como colombianos exploravam uma loteria ilegal em vários bairros de Canoas. Eles vendiam cartelas do Bono a Estrela, com direito a prêmios de até R$ 5 mil para quem acertasse uma sequência de quatro números. Após a série de reportagens publicada em julho, que mostrou operadores e gerentes do jogo, um grupo de 11 estrangeiros foi preso no mesmo mês pela Polícia Civil por exploração de jogo de azar.
Os colombianos presos fizeram acordos de transação penal com a Justiça, que estabeleceram penas alternativas e os livraram da cadeia. Desde então aqueles vendedores de bilhetes lotéricos irregulares sumiram das ruas canoenses.
Só que colombianos continuaram a cometer o mesmo crime, em outras cidades. Repórteres de Zero Hora constataram que o esquema continua, só que com novos nomes e em outros locais.
O GDI encontrou colombianos vendendo loterias ilegais em Porto Alegre (chamada Fortuna), Alvorada (com nome de Sua Sorte) e Cachoeirinha (o Pegue Sorte). É prática idêntica ao do Bono a Estrela, só que com outras denominações. Cada bilhete custa R$ 5 e contém oito sequências de quatro números. No verso do cupom, há um carimbo com a data de validade da aposta.
Cada cartela só serve para o dia em que é vendida. Mas, em caso de chuva, o sorteio é adiado e o bilhete passa a valer para o dia seguinte. A sequência de milhar é sorteada, número a número, em um globo com bolas. Esses sorteios ocorrem de segunda a sábado, a partir das 16h. A premiação costuma acumular de R$ 1,5 mil em R$ 1,5 mil.
Em Canoas, os sorteios ocorriam em plena rua, junto a estabelecimentos comerciais. Após as prisões de exploradores do jogo, os colombianos mudaram de cidade e passaram a sortear os números ganhadores em manobras feitas dentro de residências particulares. A rodagem do globo com as bolinhas é filmada e veiculada por meio do WhatsApp, cujo número está impresso no bilhete vendido aos consumidores. Não há qualquer tipo de conferência ou auditoria, o sorteio sequer é testemunhado pelos apostadores. É uma questão de confiar ou não na lisura do jogo.
Nas três cidades onde a reportagem encontrou o jogo, os estrangeiros negociam cartelas e fazem sorteios de jogo de azar sem serem importunados pelas autoridades da segurança pública. Em Alvorada, é possível ver os colombianos pelas ruas centrais, munidos de alto-falantes, usados para alardear a venda de bilhetes sacados de uma sacola de pano. Na semana passada, um homem e duas mulheres comercializavam o Sua Sorte entre as paradas 48 e 51 da Avenida Getúlio Vargas, a principal do município.
Um dos vendedores, chamado Jorge Iván, relata que o sorteio acontece às 16h, em uma casa da Rua União, na região central de Alvorada.
— Sou colombiano. Somos vários aqui — confirma o vendedor.
Na foto vinculada ao número de WhatsApp que ele fornece para conferência do sorteio, Jorge Iván aparece sorridente, ao lado de uma mulher.
Logo ela aparece na Avenida Getúlio Vargas, acompanhada de outra mulher, também vendendo bilhetes. Anuncia em um megafone prêmio de R$ 3 mil do Sua Sorte, para aquele dia. Questionada, diz que as duas são de Manizales, região central da Colômbia.
A reportagem vai até a residência na Vila União e constatou que vários colombianos ingressaram nela (inclusive os três vendedores abordados na avenida principal). Depois das 16h, chegam pelo WhatsApp vídeos de sorteios realizados naquela casa, nos fundos. Os números foram extraídos pela mulher de Jorge Iván. Após as 17h, novo vídeo mostra vários colombianos saudando um homem sorridente, apontado como ganhador do prêmio de R$ 3 mil daquele dia. A premiação lhe foi entregue, em cédulas de R$ 100, contadas em voz alta durante uma filmagem.
Na Lomba do Pinheiro, na Capital, os colombianos se concentram na Rua Santo Amaro, parada 16. Lá o jogo se chama Fortuna. Um homem de idade já avançada anuncia os bilhetes aos gritos de "Sorteos para hoje, boletas para hoje", em "portunhol". Fornece o número de Whats para conferência e diz que o sorteio será em frente a um supermercado. Questionado de onde é, responde com uma gargalhada:
— Sou de Medellín, segunda maior cidade da Colômbia... Terra de Pablo Escobar Gavíria (o mais famoso traficante colombiano, morto em 1993).
Ele diz que veio para o Brasil "já velhinho" e que trabalhava numa firma. Migrou depois de aposentado e, como o dinheiro do "jubilamento" (aposentadoria) é pouco, migrou para Porto Alegre. Ele diz que deixou a família na Colômbia. Ao entardecer, pelo WhatsApp, chegou vídeo dele e de outros oito homens e mulheres, fazendo sinal de positivo e com bilhetes nas mãos. O ganhador é anunciado como "primo" e aparece, sorridente, recebendo R$ 1 mil em cédulas de R$ 100.
Em Cachoeirinha, a romaria dos colombianos acontece na Rua Curitiba, parada 59, bairro Fátima, em zona repleta de estabelecimentos comerciais populares. A reportagem conversa com um casal que anunciava o sorteio em megafones. Eles informam que são da cidade de Manizales, na encosta da cordilheira dos Andes. Estão no Rio Grande do Sul há alguns anos e se dedicam a vender o Pega Sorte. Naquele dia, o número sorteado não teve vencedor e o prêmio ficou acumulado.
Jogatina, agiotagem e tráfico humano
Na época da série sobre a loteria clandestina Bono a Estrela, vendida em Canoas, o GDI entrevistou integrantes do Ministério Público e da Polícia Civil que foram taxativos: a ausência de licença do Ministério da Fazenda caracteriza a exploração do jogo de azar. Jogos no Brasil precisam ser regulamentados pela Caixa Econômica Federal, fato que não acontece com os sorteios revelados pela reportagem.
O GDI também comprovou que, pelo menos em Canoas, alguns dos vendedores de loteria ilegal também ofertavam cartões para empréstimos com juros abusivos. A prática é considerada agiotagem e punida com até cinco anos de prisão. Uma investigação foi aberta pela Polícia Civil, mas não houve indiciados, porque testemunhas não apontaram os chefes do esquema.
O GDI também entrevistou um colombiano que age como cobrador para os agiotas na Grande Porto Alegre. Ele disse que seus compatriotas chegam ao Brasil em um esquema de tráfico humano, já que contraem dívidas para fazer a migração e só conseguem pagar operando como vendedores de esquema ilegais. Investigações sobre suposto esquema de tráfico de pessoas do território colombiano para o brasileiro foram abertas no país pela Polícia Federal.
Um jogo, vários nomes
- Bono a Estrela — Canoas
- Pegue Sorte — Cachoeirinha
- Fortuna — Porto Alegre
- Sua Sorte — Alvorada
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