Dez anos depois, pouco mais da metade das 1,8 mil creches previstas no programa federal Proinfância no Rio Grande do Sul foi concluída. Enquanto prefeituras tentam terminar as obras, o Ministério da Educação anuncia prioridade a novos projetos ainda não iniciados.
O Grupo de Investigação da RBS visitou oito escolas inconclusas, na Região Metropolitana e no Litoral Norte. Elas são um resumo do dilema enfrentado por milhares de pessoas que adiaram o sonho de trabalhar fora porque não têm com quem deixar os filhos, embora vissem as creches sendo construídas – e depois, serem abandonadas. A seguir, alguns relatos:
Gravataí
O município da Região Metropolitana tem um dos piores cenários. São quatro esqueletos arquitetônicos abandonados entre 2013 e 2015. O pior caso é no Rincão da Madalena, onde uma escola teve iniciados apenas os alicerces, 7% da obra. Duas outras, no Loteamento Porto Seguro e na Morada do Vale III, chegaram à metade dos prédios. Com o tempo, o mato cresceu entre os cômodos, as telhas e esquadrias foram furtadas, os edifícios viraram moradia de sem-teto e as paredes estão pichadas.
GZH localizou seis das crianças que poderiam ter desfrutado da creche da Rua Aliança, no bairro Morada do Vale III. Hoje elas são cuidadas pela pedagoga Lisiane Fraga Trindade, já que os pais delas precisam trabalhar. A escolinha ficou em 52,8% do prometido. O governo repassou R$ 135 mil, dos R$ 788 mil pactuados.
Lisiane tem os gêmeos Maurício e Murilo (10 meses de idade) e ainda cuida de Laura Souza, Eduarda Magno, Gabrielli Oliveira Ribeiro, Eloá Costa e Bryan Costa Nascimento, esses na faixa dos cinco anos. Todos eram clientes em potencial da creche. Hoje usam a estrutura abandonada para brincar de se esconder.
— Virou moradia de bicho. Até um cachorro morto retiraram dali. Tem também moradores de rua por ali — diz Lisiane.
O prédio abandonado virou lugar de depósito de entulho. Uma vergonha. Enquanto isso, o guri não tem com quem ficar
MARILENE MORETTO
Dona de casa
Bryan, cinco anos, sempre foi cuidado pelos avós, Solange e Luís Alberto Pons Nascimento. Deveria ter usufruído da creche da Rua Aliança. Mora na casa em frente. Agora, ele e outras crianças conseguiram vaga na sala anexa de um colégio próximo, improvisada no lugar da creche.
O drama se repete na Rua Curumim, no Loteamento Porto Seguro. A dona de casa Marilene Moretto cuida do neto Matheus, de um ano e meio, enquanto os pais dele trabalham. Ele está na fila de espera para uma creche do bairro desde dezembro. A creche iniciada no bairro pela MVC teve 54,1% da construção executada. Estava orçada em R$ 1,5 milhão, e o FNDE repassou R$ 481 mil. As obras pararam em 2015.
— O prédio abandonado virou lugar de depósito de entulho. Uma vergonha. Enquanto isso, o guri não tem com quem ficar — desabafa Marilene.
Pelo menos uma das escolas da MVC interrompidas foi retomada em Gravataí. É a creche no bairro Morada do Vale II, que está 90% construída. O prazo para conclusão é seis meses. O FNDE chegou a repassar R$ 1,3 milhão, do R$ 1,4 milhão previsto. Agora a prefeitura vai inteirar o que falta com dinheiro próprio.
A prefeitura gravataiense informa ainda que estuda a possibilidade de retomar as outras creches abandonadas utilizando uma nova metodologia construtiva, já usada em outras unidades. São salas de aula modulares com estruturas em concreto branco com fibra de vidro – o que melhora a temperatura e a acústica.
Guaíba
Guaíba tinha duas creches projetadas pela MVC. Ambas foram abandonadas quando cerca de metade da obra estava construída, há mais de oito anos. Uma fica no loteamento Colúmbia. A outra, no bairro Pedras Brancas, duas zonas densamente povoadas, de classe média baixa. Ambas foram orçadas em R$ 1,4 milhão cada. O governo federal repassou R$ 753 mil para cada uma delas. A primeira atingiu 53% da construção prometida, a outra ficou em 56,4% do prometido.
Crianças que seriam beneficiadas pela creche do loteamento Colúmbia, como Vicente Boeira, quatro anos, e seu irmão Miguel, 11, hoje ficam com os avós. Flávio Boeira, aposentado, recorda como as mães do bairro se encheram de esperança na década passada, quando a creche para 250 vagas foi anunciada.
— Ficou na intenção. De repente os operários foram embora — relata Bernardete, avó que passa o dia com os meninos.
Osório
Durante muito tempo a vendedora Valéria Machado Delfino, moradora de Osório, não teve com quem deixar o filho Bernardo, de seis anos. Deixava um pouco com a mãe dela, Jucélia. Ou com uma babá, “mesmo sem ter como pagar”, sintetiza a comerciária.
Creche, mesmo, Bernardo só conheceu aos quatro anos de idade. Antes disso ficava brincando no terreno do que deveria ser uma unidade do Proinfância no bairro Medianeira. A escolinha começou a ser construída em março de 2014. Foi interrompida em janeiro de 2015, com 37,05% da obra concluída. Desde então, virou lugar de passeio da criançada e moradia para sem-teto.
O FNDE informa ter repassado R$ 752 mil de R$ 1,5 milhão pactuados com a prefeitura de Osório, que diz ter devolvido R$ 303 mil à União, após a MVC abandonar a obra. Em decorrência da degradação do prédio, de furtos e depredações, a prefeitura tentou trocar a metodologia para o uso convencional, de tijolos. Isso se tornou inviável, porque a base de concreto da escola da MVC foi dimensionada para fibra de vidro e não para alvenaria, explica o secretário de Educação de Osório, Dilson Maciel. O peso seria demasiado e o custo adicional não compensaria.
A decisão foi de demolir o que restava das paredes de fibra. A prefeitura acionou a Justiça para tentar obter indenização, a ser paga pela construtora.
Cidreira
O piso do que deveria ser uma das principais creches de Cidreira, no Litoral Norte, virou praça. Cansados de esperar por um prédio que jamais foi erguido, os moradores da Vila Nazaré pegaram parte do material abandonado pela construtora MVC para transformar em brinquedos infantis. As ripas de fibra de vidro deram origem a balanços, algumas viraram lixeiras e floreiras.
O FNDE repassou R$ 428 mil à prefeitura de Cidreira para construção da escola, o que representa mais da metade dos R$ 790 mil previstos para a obra. Só que a construção estacionou em 9% do total pactuado. A prefeitura pensa em fazer outra creche, mas sem aproveitar a estrutura deixada pela MVC.
Uma dia os operários foram embora e não voltaram. E a Maria ficou sem creche. Ela até cortou o pé ao bater numa dessas estruturas de fibra e plástico que deixaram para trás. Como estava tudo abandonado, o povo transformou em praça
IGOR PERELÓ DE FRAGA
Trabalhador da construção civil
— A base enferrujou. E o que ficou da obra, na superfície, foi furtado — confirma a secretária de Educação de Osório, Mercedes Giroleti.
Um dos que saíram prejudicados é o trabalhador da construção civil Igor Pereló de Fraga. A creche acolheria sua filha Maria, nove anos. Mas parou de ser construída quando ainda estava só no piso.
— Uma dia os operários foram embora e não voltaram. E a Maria ficou sem creche. Ela até cortou o pé ao bater numa dessas estruturas de fibra e plástico que deixaram para trás. Aí foi sendo cuidada pela minha mulher, sem ter onde estudar quando era pequena. Como estava tudo abandonado, o povo transformou em praça — descreve Igor.
A secretária Mercedes diz que a prefeitura quer retomar a obra. Só não sabe com que verba e quando.
Terra de Areia
Pichações obscenas, preservativos usados, cobras... As dependências da Escola de Educação Infantil do Parque Aliança, próxima à área central de Terra de Areia, guardam de tudo um pouco. Menos alunos. É que ela jamais foi inaugurada. A construção parou quando atingiu 34,48% do previsto, em 2014. Desde então sobraram o piso e as paredes, que a cada dia são depredados um pouco mais.
— Infelizmente, virou ponto de tráfico, de prostituição e alvo de depredação. É uma vergonha. De quem vamos cobrar? — questiona a empresária Janete Cardoso Eberhardt.
Infelizmente, virou ponto de tráfico, de prostituição e alvo de depredação. É uma vergonha. De quem vamos cobrar?
JANETE CARDOSO EBERHARDT
Empresária
Janete reside a meia quadra da escola abandonada e tem três filhos que poderiam ter estudado na creche: Laura, 12 anos, Gustavo, nove, e Luísa, seis. Ela e o pai das crianças, Sérgio Eberhardt, tiveram de levar os filhos para salas alugadas pela prefeitura, em local mais distante.
Situação semelhante ocorreu com a funcionária de uma funerária, Juliana Cruz da Silveira. Só que um pouco pior. Sem ter onde deixar a filha Iara, oito anos, quando esta era pequena, Juliana teve de parar de trabalhar. Só retomou o serviço pouco tempo atrás.
O FNDE diz que repassou R$ 395 mil dos R$ 790 mil previstos para a obra. A prefeitura ingressou na Justiça contra a construtora e, na falta de creches, aluga salas pela cidade para abrigar as crianças.
Três Cachoeiras
Duas babás, uma veterana e uma novata, se revezam na residência do empresário Tiago Borges e sua esposa, a fisioterapeuta Rosana Mengue Borges. É que faltam creches na litorânea Três Cachoeiras. Na falta de ter com quem deixar o filho Vicente, de um ano e meio, o casal tem de pagar por cuidados particulares.
Eles moram a 20 metros de uma estrutura abandonada que deveria ter se tornado uma creche, construída pela MVC. A obra foi iniciada em 2014 e deveria ter sido concluída no ano seguinte. Vicente ainda era apenas projeto na cabeça dos pais, mas eles já contavam em usar a escolinha, assim que ele nascesse. Eles e centenas de outros moradores de Três Cachoeiras.
Em meados da década passada, a obra parou, misteriosamente. A gente até achou que seria retomada, o material está empilhado sobre o piso de concreto. O Vicente nasceu, tá em idade de creche, mas nem sinal da escola
TIAGO BORGES
Empresário
— Só que, em meados da década passada, a obra parou, misteriosamente. A gente até achou que seria retomada, o material está empilhado sobre o piso de concreto. O Vicente nasceu, tá em idade de creche, mas nem sinal da escola — desabafa Borges.
O FNDE repassou R$ 395 mil dos R$ 790 mil previstos para a obra. A empreiteira fez 40,4% do pactuado e desistiu. Hoje, só o piso está aproveitável, descreve o prefeito Flávio Lipert. A parte de fibra foi retirada pela prefeitura e deixada no terreno.
— A prefeitura moveu ação judicial contra a empresa. Enquanto não sai sentença, o FNDE não quer repassar novos recursos. Aí, só se fizermos uma nova escola, com verba própria — reclama Lipert.