Foi com aplauso entusiasmado de ministros que o presidente Jair Bolsonaro anunciou na última quinzena de agosto o programa Casa Verde Amarela. O projeto deve substituir o Minha Casa Minha Vida, que, em 11 anos de existência, viabilizou o sonho da moradia própria para 5,7 milhões de famílias brasileiras. O problema será impedir que o dinheiro investido se perca no ralo de irregularidades históricas dessa iniciativa.
Ao longo da última década, GZH tem mostrado que mutuários contemplados com imóveis do programa vendem ou alugam o bem recebido da União antes de quitar as prestações. Na faixa 1 do programa, os beneficiários só podem vender o imóvel quitado e, se quiserem antecipar a quitação, precisam antes pagar o subsídio das parcelas, cujo valor vai aumentar. Agora, constatou que isso continua acontecendo.
A proibição de venda ou aluguel para imóveis não quitados na Faixa 1 do Minha Casa Minha Vida (MCMV) acontece porque o governo subsidia até 90% do valor desses imóveis. A ideia é beneficiar pobres e as prestações são baixíssimas. Mesmo assim, as irregularidades, que deveriam ser coibidas pela Caixa Econômica Federal (gestora do projeto), proliferam. Em março de 2015, no governo Dilma Rousseff, a reportagem mostrou a comercialização de quase uma dezena de residências, de forma irregular, em Canoas, Cruz Alta e Florianópolis. Flagrou também casas ocupadas por invasores, sem que o poder público tenha se mobilizado para retirá-los.
Em fevereiro de 2018, no governo Michel Temer, o Grupo de Investigação da RBS (GDI) gravou ofertas de venda irregular de imóveis financiados pela Caixa. As vendas aconteciam em dois condomínios de Esteio.
Agora, no final de agosto, o GDI voltou a campo e constatou que as irregularidades no Minha Casa Minha Vida (MCMV) continuam, passado um ano e meio do governo Jair Bolsonaro. Foram visitados condomínios em Porto Alegre, Canoas e Esteio. Em todos os locais, os repórteres perguntaram por imóveis à venda e receberam ofertas.
Comprou dois apartamentos e nenhum está no seu nome
No Residencial Ana Paula, na Restinga, uma confeiteira admitiu, sem saber que falava com jornalistas, que possui dois apartamentos no condomínio. Os imóveis não estão em seu nome perante a Caixa, até porque ela não foi sorteada como mutuária, como estabelece o MCMV. Ela paga R$ 35 mensais pela prestação de cada um deles - um apartamento ela tinha alugado e agora comprou (sem passar para seu nome), no outro colocou uma tia para morar:
Confeiteira - Esse aqui paguei 20 (R$ 20 mil).
Repórter - Mas na Caixa tá no nome dos antigos donos?
Confeiteira - Tá nos antigos donos...aí depois legaliza.
Repórter - E a Caixa não complica isso aí?
Confeiteira - Olha, até agora não.
A confeiteira diz que o condomínio tem sete anos de existência e a legalização da venda só pode ocorrer com a quitação das prestações por parte de quem contraiu o financiamento na Caixa (que não é ela). Ela explica como acontece a venda de imóveis sem quitação, com contrato de gaveta.
- Nos apartamentos que tão em dia com a prestação eles querem R$ 20 mil, R$ 25 mil...que nem o meu. O meu, aqui, tá tudo em dia (as prestações)...daqui a dois ou três anos quita isso aqui, aí vai na Caixa com a pessoa que tu comprou e passa pro teu nome. No caso, os dois que comprei tão no meu nome, nesse contrato de gaveta.
Vendendo o que não é seu
No Residencial Jardim Planalto II, bairro Olaria, em Canoas, um comerciante e sua esposa oferecem o apartamento térreo para venda. Tudo mediante contrato de gaveta, irregular, sem passar o contrato do Minha Casa para o nome do comprador.
- Agora, em janeiro ou fevereiro, a gente termina de pagar a prestação e a dona do apartamento passa pro nome dela (esposa). Ou pra quem comprar, no caso. No dia em que pagar a última prestação, a gente vai na casa da mulher, busca ela e quem tiver comprado vai junto na Caixa - resume o homem, na tentativa de convencer o comprador.
O casal admite que está há apenas um ano no apartamento.
- A gente trocou, no caso, por uma outra casinha no bairro Guajuviras. Nós tinha mais ou menos uma ideia de pedir R$ 40 mil, R$ 45 mil.
A reportagem encontrou outros apartamentos não quitados à venda no residencial, mas um porteiro alerta para o risco do negócio.
- Eles tentam vender, mas aí se descobre, dá zebra...Por exemplo, faltam três anos pra quitar, vendeu pra ela, a Caixa descobre, tu toma. Tu te incomoda...a Caixa descobre, Deus o livre.
"Eu quero vender o meu...Quitado não existe"
No Residencial Quaraí, bairro São José, em Esteio, a reportagem contatou dois idosos que estão vendendo seus imóveis. Um deles é um aposentado que mostra a residência e pede R$ 120 mil, mas deixa todos os móveis. Diz que a prestação está em R$ 44 mensais.
- Falta um ano para liquidar, mas agora que tá no final, resolvi. Cansei. Minha mãe morava aqui, morreu há sete anos e desde então quero sair - justifica.
A negociação seria por contrato de gaveta, sem participação da Caixa Econômica, onde o nome no financiamento continuaria o dele, alerta o aposentado.
Na entrada do residencial Quaraí outra pessoa fala que quer vender. É outro aposentado. Ele pede R$ 90 mil pelo imóvel.
- Quero vender o meu. Quitado não existe, nem adianta tentar. Falta um ano e pouco para quitar. É 90 (mil) no cash, toma lá e dá cá. O contrato é em 10 anos, nós tamo em oito anos e pouco. Tem de ser contrato de gaveta, como todo mundo faz - estabelece.
O repórter pergunta se depois é só passar para o seu nome.
Aposentado: Aí é outra coisa, é depois de quitado...e vou embora pra Santa Catarina. Mas minha família mora tudo aqui.
Ouvindo a negociação, uma moradora do residencial adverte contra a quitação antecipada:
- Tu cuida, porque se quitar antes, tu perde o subsídio da Caixa. Aí a parcela aumenta, até cinco vezes mais.
Contrapontos
O que diz a prefeitura de Canoas:
A Secretaria de Desenvolvimento Urbano e Habitação de Canoas informa que, assim como as questões contratuais são de competência da Caixa Econômica Federal, a fiscalização, o acolhimento de denúncias, averiguação, notificação e encaminhamentos de retomadas em casos de verificada a irregularidade também são de responsabilidade do banco. Nesse ponto, compete ao poder Público Municipal apoiar a Caixa nas fiscalizações quando solicitado.
O que diz a prefeitura de Esteio:
A Secretaria Municipal de Desenvolvimento Urbano e Habitação (SMDUH) de Esteio informa que realiza a fiscalização de irregularidades em imóveis do programa Minha Casa, Minha Vida a partir de denúncias, que podem ser feitas de forma anônima. Basta ligar para a Ouvidoria da Prefeitura (0800-541-0400) ou da SMDUH (3433-8156). Caso a denúncia se confirme, é emitida uma advertência sobre a irregularidade e, posteriormente, o caso é repassado à Caixa Econômica Federal, para possível reintegração da posse. Em 2019, a Prefeitura de Esteio encaminhou para a CEF 31 termos de vistoria com apuração de irregularidades nos quatro conjuntos residenciais da faixa 1 do MCMV localizados na cidade (Renascer I e II, Quaraí e Boqueirão). Neste ano, em função da pandemia do novo coronavírus (covid-19), as vistorias foram suspensas.
O que diz a prefeitura de Porto Alegre:
O Departamento Municipal de Habitação informa que todas as denúncias que chegam são acolhidas e enviadas à polícia e à Caixa Econômica Federal. Quando uma família vende de forma ilegal, não entra mais na fila para nova unidade. A venda de imóveis do MCMV é crime. Denúncias podem ser feitas à ouvidoria, no fone (51) 3289-1200. "O Demhab é totalmente contra essa ilegalidade e toma todas as providências para encaminhar ao procedimento policial necessário para as investigações a respeito. Solicita que as pessoas que souberem dessas práticas ilegais que denunciem. É preservado o sigilo da denúncia", ressalta Emerson Corrêa, diretor-Geral do Demhab.