Principal alvo da espionagem dos Estados Unidos no Brasil, Leonel Brizola teria planejado um ataque contra o então presidente Artur da Costa e Silva em abril de 1967, durante a Cúpula das Américas que ocorreria em Punta Del Este, no Uruguai, onde o ex-governador gaúcho estava exilado. É o que diz um dos documentos secretos da CIA que foram liberados recentemente para consulta pública.
Brizola é citado em um contexto de diversas preocupações do governo americano com a convenção, incluindo temores de sabotagens ao sistema elétrico e de distribuição de água. A segurança do presidente americano Lyndon Johnson era outra pendência listada no relatório da CIA. Depois de classificar os organizadores da convenção como "não confiáveis", o documento volta suas atenções ao político gaúcho.
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"Leonel Brizola, um líder extremista brasileiro exilado, escapou da vigilância uruguaia. Brizola pode estar planejando algum ato de violência contra o presidente brasileiro quando ele visitar Punta del Este, embora pareça mais provável que ele tentaria provocar o governo de Brasília, encenando algum incidente envolvendo terroristas ou guerrilheiros no Brasil", diz trecho do memorando de inteligência, assinado em 24 de março de 1967. Jornalista e um dos colaboradores próximos do político trabalhista na época, Índio Vargas acredita na hipótese de um ataque contra Costa e Silva ter sido planejado, mas destaca a improbabilidade de sucesso.
– Eles (Brizola e aliados) cogitavam muito. Da maneira que fosse possível, queriam atacar o governo brasileiro, mas era uma coisa muito difícil e complexa – avalia Vargas, que participou de diversas reuniões com o líder trabalhista em Montevidéu na tentativa de organizar um levante armado no Brasil, ideia que fracassou.
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Presidente do Movimento de Justiça e Direitos Humanos, Jair Krischke também considera plausível a trama do atentado, mas avalia que a desistência foi o caminho natural ante as severas consequências que o ato poderia detonar.
– É possível que tenha sido planejado, mas não era factível. Brizola não entraria em uma fria. E fazer isso seria uma fria – destaca Krischke.
Opinião divergente é a do jornalista Flávio Tavares, outro que teve proximidade com o líder trabalhista e, durante os idos das décadas de 60 e 70, participou de importantes coberturas políticas e integrou a luta armada, sendo preso, torturado e exilado.
– Isso é uma fantasia deles (CIA) sobre o Brizola. Em março de 1967, ele já começava a abandonar a ideia da guerrilha no Brasil. Ele defendeu insurreição armada, mas não com atentados. Mas era natural que tanto a CIA quanto o SNI (Serviço Nacional de Informações) ficassem com medo da ida do Costa e Silva ao Uruguai, que era como um território livre. Muitos exilados estavam lá – analisa Tavares.
Professor titular de História do Brasil na Universidade Federal Fluminense e autor de uma das biografias mais conceituadas sobre João Goulart, Jorge Ferreira destaca que o plano de Brizola era voltar a Porto Alegre após a cidade ser tomada por apoiadores fiéis do Exército e da Brigada Militar. Ele retomaria a Campanha da Legalidade, fazendo da cidade um ponto de resistência à ditadura. Não deu certo e, do exílio, Brizola contou com o apoio de Fidel Castro para organizar focos de guerrilha dentro do Brasil, iniciativa que também fracassou.
– Nunca foi do estilo do Brizola praticar atentados pessoais. Alguém pode ter tido essa ideia estapafúrdia, a CIA descobriu e culparam ele – avalia Ferreira.
A preocupação dos americanos com o trabalhista era notória e isso o tornou alvo de espionagem e de centenas de relatórios entre as décadas de 1950 e 1980, percorrendo mais de 30 anos de espreita. Durante o governo de José Sarney, na época da redemocratização, era constante a observação da CIA sobre as chances de Brizola ser eleito presidente na eleição de 1989, a primeira após o fim do regime militar. Um dos papéis cita que, caso eleito, o trabalhista poderia ser impedido de assumir o poder pelas Forças Armadas.
"Embora a popularidade de Brizola esteja em ascensão, suas chances de chegar à presidência estão longe de estarem garantidas. Sua defesa aberta de políticas esquerdistas preocupa brasileiros moderados. De acordo com a Embaixada dos Estados Unidos (trecho apagado), líderes militares, por sua vez, sugeriram que impediriam Brizola de tomar posse", diz documento da CIA nominado Latin American Review, de 2 de agosto de 1985.
Anos antes desse relatório, a inteligência americana mapeou a aproximação de Brizola com os governos esquerdistas de Cuba e Argélia. Também houve inquietação com a hipótese de ele se tornar dirigente da Petrobras no governo de João Goulart na década de 1960, período em que encerrou o mandato como governador do Rio Grande do Sul, elegendo-se posteriormente deputado federal pelo Rio de Janeiro.
"Leonel Brizola – defensor da nacionalização – pode obter um cargo de gabinete como ministro de Minas e Energia ou como chefe do monopólio nacional de petróleo Petrobras. Ele está em alta depois de obter mais votos do que qualquer congressista na história e diz que não ficará satisfeito em estar apenas no Congresso", relata documento da CIA sem data e que soma 10 páginas, a maioria delas censuradas.
Apesar das preocupações americanas acerca do petróleo, o real interesse do trabalhista era assumir o Ministério da Fazenda, à época superpoderoso por acumular as funções do Banco Central, que ainda não existia. Ele chegou a criar o bordão "contra a inflação, Brizola é a solução", mas Jango, temendo entregar os rumos do governo, não lhe deu o cargo.
Em abril de 1963, o embaixador dos Estados Unidos no Brasil se reuniu com o então presidente João Goulart e fez questionamentos "sobre a agitação política" liderada por seu cunhado Brizola. A resposta de Jango consta em documento secreto enviado ao Departamento de Estado americano, que equivale ao Ministério das Relações Exteriores do Brasil.
"Goulart respondeu que tinha estreitos laços pessoais com Brizola, mas que discordava inteiramente dele em questões políticas", diz trecho do documento.
– Para os Estados Unidos, o demônio era Brizola, e não Jango. Como governador do Rio Grande do Sul, Brizola desapropriou a companhia de energia elétrica e a telefônica, as duas americanas, e criou a partir delas a CEEE e a CRT. Ele era o inimigo – relata Jair Krischke.
Flávio Tavares avalia que Brizola, como governador, "desafiou os EUA como ninguém havia feito na América Latina". Somente Fidel Castro provocou maior ira com a Revolução Cubana, cujo triunfo ocorreu em 1º de janeiro de 1959, pouco antes das estatizações de Brizola.
– O Goulart era um líder trabalhista que pregava reformas dentro do capitalismo para permitir maior justiça social. O Kennedy (John, presidente dos EUA), em abril de 62, se referiu a ele como 'grande amigo'. Quanto ao Brizola, as empresas norte-americanas que ele nacionalizou no Rio Grande do Sul foram indenizadas com um cruzeiro cada uma. Algumas análises afirmam que ele estava à esquerda do Partido Comunista. O próprio Prestes (Luís Carlos, líder do Partido Comunista) admitiu que Brizola poderia fazer no Brasil o papel que Fidel Casto fez em Cuba – analisa Ferreira.
Os episódios de encampações de empresas americanas causavam incômodo estrangeiro e foram alvo de relatório da CIA de março de 1962. A conclusão da análise da espionagem também mostra como era turbulenta a relação entre os cunhados Brizola e Jango aos olhos forasteiros.
"O governador Brizola, do Rio Grande do Sul, em 27 de fevereiro defendeu a expropriação de todas as empresas estrangeiras no Brasil, incluindo bancos. Ele anunciou os preparativos para se apoderar de uma subsidiária no Rio Grande do Sul da empresa americana Eletric Bond and Share Corporation. O governo tomou conta de uma subsidiária da International Telephone and Telegraph (ITT) no início deste mês. O governador pode estar realizando esses movimentos para constranger seu rival político e cunhado, o presidente João Goulart, antes da visita de Goulart aos EUA em 3 de abril", diz o boletim.
– Essa rivalidade (entre Brizola e Jango) existiu, sim, mas depois da Campanha da Legalidade. O Brizola se sentiu forte suficiente para disputar o comando nacional do PTB com o Goulart. Brizola foi um crítico contundente do governo Goulart, queria que ele fizesse as reformas de base imediatamente, passando por cima do Congresso – relata o historiador Ferreira.