
Os canhões silenciaram há 167 anos, o tratado de Ponche Verde concedeu uma paz honrosa aos farrapos e o Rio Grande do Sul desistiu de ser a nação independente que ousou proclamar, mas os ecos da maior guerra civil já travada no Brasil continuam surpreendendo. Nesta época do ano, ocorre uma compulsão cívica: multiplicam-se os acampamentos gaudérios, desfila-se com milhares de cavalos, canta-se o Hino Rio-grandense. É a parte visível dos festejos. O que talvez se ignore é que a rebelião de 1835-45 segue expelindo vestígios e inoculando mistérios. Para contar a epopeia que forjou a identidade gaúcha, ZH incursionou por 10 lugares emblemáticos da Revolução Farroupilha. Durante 12 dias, rodou 3.161 quilômetros, inclusive em Santa Catarina e no Uruguai.
O berço da rebelião farroupilha
A revolução que abalou o Império do Brasil por quase 10 anos nasceu no casarão
de Gomes Jardim, em Pedras Brancas (atual município de Guaíba), à sombra de
um frondoso cipreste. Foi de lá que partiu a ordem para invadir Porto Alegre.
A semente do separatismo brota na estância de José Gomes de Vasconcelos Jardim, à sombra de um bojudo cipreste que guarnece o casarão onde conspiram Bento Gonçalves e outros líderes farrapos. Talvez sorvendo goles de erva-mate sob o abrigo da árvore, que desponta na parte alta de Pedras Brancas (atual município de Guaíba), podem avistar a Porto Alegre de apenas 14 mil moradores que pretendem invadir.
O plano começa a ser executado em 18 de setembro de 1835, quando Gomes Jardim e mais 60 homens cruzam as águas do Guaíba, em barcos, e acampam nos arredores da Capital, onde são esperados por outros revoltosos a cavalo. Bento Gonçalves ficou no casarão de Pedras Brancas, o quartel-general da insurreição. Perto da meia-noite do dia 19, Jardim e o coronel Onofre Pires derrotam a guarda imperial que deveria proteger a cidade, na Ponte da Azenha.
Foi mais fácil do que o esperado. Na manhã de 20 de setembro, os farroupilhas entram triunfalmente em Porto Alegre. Não trazem índios degoladores, como temiam as famílias. Nem escravos de charqueadas sedentos por butins, como alarmavam os comerciantes portugueses aos fuxicos.
A Capital não resiste à ocupação. O presidente da Província de São Pedro do Rio Grande do Sul (equivalente a governador do Estado), Fernandes Braga, vê-se na vergonha de fugir numa escuna, velas desfraldadas, via Lagoa dos Patos. Antes de ser deposto, raspa os cofres públicos. Renuncia ao poder, não ao dinheiro. A sublevação tramada no casarão sombreado pelo cipreste espalha-se como um rastilho de pólvora pela província. Evolui para uma guerra civil - a partir do momento em que é proclamada a independência da República Rio-grandense -, o que ameaça a integridade do Império do Brasil por 10 anos. Testemunhas das confabulações revolucionárias, a residência e a árvore permanecem intactas hoje.
O que mudou, passados 177 anos do início da guerra dos farrapos, é a barreira de prédios que surgiu ao redor do casarão de Pedras Brancas. Ainda se pode desfrutar a visão das águas do Guaíba, que se tornam prateadas com a incidência do sol, mas não com a limpidez paisagística da primeira metade do século 19. Fosse agora, Bento e Gomes Jardim teriam de procurar melhor ângulo para assestar suas lunetas em direção a Porto Alegre.
Dois patrimônios históricos da cidade
O casarão e o cipreste estão tombados pelo patrimônio histórico, sob a guarda da família Leão, que comprou o imóvel dos descendentes de Gomes Jardim na década de 1920. Gaston Leão, 74 anos, e a filha, Míriam, 47 anos, empenham-se na preservação do patrimônio.
- Nasci nesta casa. Meu ancestral, o Juca Leão, era compadre do Bento e morreu combatendo pela Revolução - conta Gaston.
O que pai e filha desconheciam é que revoluções podem ter desdobramentos inesperados. O casarão estilo colonial português ficou a salvo dos canhões imperiais, entre 1835-45, mas sofreu um bombardeio mais impiedoso, sistemático e devastador nos anos 1990: o da especulação imobiliária. Tentaram demoli-lo para erguer um arranha-céu de lojas e apartamentos no local.
- Mas nossa família não aceitou, o lucro e o dinheiro não são o mais importante - ressalta Gaston.
Míriam, como professora de História, se encarregou das argumentações junto aos órgãos públicos para obter o tombamento. Entre os motivos, destacou que Guaíba é o berço da Revolução Farroupilha graças à conspirata ocorrida no casarão. Foi a partir dele que a cidade tomou forma. É perto do cipreste que jazem os restos mortais de Gomes Jardim, um dos presidentes da efêmera República Rio-grandense.
- Aqui eles tiveram a atitude de fazer a revolução - diz Míriam.
Baú farrapo

Os restos mortais de Gomes Jardim repousam na frente do casarão, ao pé do monumento erguido na década de 1920. A inscrição na lápide, meio apagada pelo tempo, homenageia o "caritativo pai dos pobres" - era médico autodidata. Um desenho de coração em alto-relevo, trespassado por duas flechas, decora a pedra.
O cipreste em frente ao casarão de Gomes Jardim teria sido plantado por espanhóis. A lenda informa que foi semeado para assinalar a sepultura de um general que morreu durante a invasão espanhola ao Rio Grande do Sul (1763-1776). José Lutzenberger, morto em 2002, atestara que a árvore - exótica no Estado e símbolo de luto - soma mais de dois séculos.
Bento Gonçalves, primo de Gomes Jardim, morreu no casarão de Pedras Brancas, em 1847, adoentado, dois anos após o término da Revolução Farroupilha. Tinha 59 anos, afastara-se da política.
Guardiães do patrimônio Gaston Leão e a filha, Míriam,
empenham-se na preservação do casarão e do cipreste

Localização: Pode-se pegar o catamarã que liga Porto Alegre a Guaíba, até para aproveitar parte da visão que os farroupilhas tiveram durante a travessia aquática que deflagrou a revolução. Outras opções são de carro ou ônibus. O sítio histórico Gomes Jardim fica no centro de Guaíba, no alto de um morro.
Gomes Jardim
Fazendeiro, maçom, médico prático e capitão, José Gomes de Vasconcelos Jardim (1773 - 1854) herdou o casarão de Pedras Brancas ao casar-se com Isabel Ferreira Leitão. Conspirou desde o início pela Revolução Farroupilha. Em novembro de 1836, diante da ausência de Bento Gonçalves, assumiu interinamente a presidência da República Rio-grandense. Nos estertores da guerra civil, quando Bento recusou governar a província por estar desgostoso com intrigas, voltou ao cargo. Mas não assinou o tratado de paz de Ponche Verde, em 1845, alegando estar doente.