Escalado pelo Departamento Municipal de Água e Esgotos (Dmae) para falar sobre avaliações de hidrólogos de que parte da enchente que tomou Porto Alegre nos últimos dias escancarou falhas de projeto e de manutenção, o diretor-adjunto Darcy Nunes afirma que o avanço da água por entre o Muro da Mauá, sobre diques e pelas redes de drenagem ocorreu porque a enchente superou a capacidade prevista do sistema — mesmo que tenha ficado abaixo da cota de inundação calculada para seis metros até a tarde desta segunda-feira (13).
Para Nunes, esse nível de seis metros não deveria ser interpretado como o limite de segurança absoluta para a Capital, contrariando especialistas ouvidos por GZH em reportagem publicada nesta segunda. Ainda segundo o diretor-adjunto do Dmae, "o que mais tem é manutenção" no aparato anticheias da cidade, e todo o complexo formado pelo muro, por diques e casas de bomba terá de ser "repensado".
O Ministério Público do Rio Grande do Sul (MP-RS) informou que vai instaurar uma ampla investigação para traçar um diagnóstico do sistema de prevenção e impacto no regime hídrico do Guaíba e dos rios próximos. O promotor de Justiça de Defesa do Meio Ambiente de Porto Alegre Felipe Teixeira Neto sublinha que serão apuradas "causas e consequências" envolvidas neste fenômeno. A ideia é apresentar saídas emergenciais de médio e de longo prazo.
Leia abaixo, os principais trechos da entrevista concedida por Darcy Nunes a GZH por telefone nesta segunda-feira.
Apesar de Porto Alegre ter um sistema contra cheias que foi projetado pra resistir a uma cheia de seis metros, partes importantes da cidade acabaram inundadas. Que falhas houve?
A gente fica muito focado na Capital, mas é um sistema de proteção que envolve toda a área metropolitana. O maior contribuinte de inundação aqui é o (Rio) Jacuí. Causou inundação em Eldorado, Canoas, São Leopoldo, assim por diante. Mas tudo bem, não estou transferindo culpa, só estou dizendo para tentar olhar a coisa de forma mais macro. Segundo, essa cheia é a maior que o Guaíba já teve desde o começo dos registros. Isso tem de ser ponderado porque sobrepujou pontes de rodovias, o aeroporto, barragens. O evento climático é fora de qualquer projeção. Mas vamos falar de Porto Alegre: "ah, o sistema de proteção é para cota seis"... não é bem assim. Qualquer cálculo hidráulico que a gente faz tem um espaço de folga. Então não é para o Guaíba chegar na cota seis, (o sistema) é para menos do que isso. Provavelmente, mais de um metro de folga. Então, certamente, o que foi usado pelo engenheiro do extinto DNOS (Departamento Nacional de Obras de Saneamento) que planejou esse sistema na década de 1960 não era para o Guaíba chegar a 5m35cm.
Não? O senhor tem alguma documentação indicando que a cota de segurança é outra? Os hidrólogos afirmam que a cota de segurança é de seis metros.
É, é a cota, mas não a cota de segurança absoluta, vamos dizer assim. Mas, certamente, o sistema não foi calculado para tudo isso.
Qual a cota de segurança absoluta calculada? O Dmae sabe?
Absoluta? Vamos lá, deixa eu avançar. Isso é um histórico, desde 1960. Tem de avaliar a documentação de todos os planos que houve, alterações, projetos, intervenções desde 1960 e poucos pra cá. É uma avaliação longa. Também fala-se "ah, (faltou) manutenção, o portão tá sem borracha de vedação". Olha, o sistema falhou em coisas muito mais graves. Alguns portões se deformaram. Botar borracha não iria mudar nada. A estrutura não suportou o fluxo da água. Algumas casas de bomba, que são desse planejamento feito na década de 60, 70, se mostraram incapazes de bombear água a partir dessa cota de cerca de 4m50cm a ponto de a água voltar para a cidade. Tanto não suportaram que se formou uma situação não aceita na engenharia, que é o piso das salas onde estão os equipamentos inundar. Não poderia, as casas de bombas deveriam estar todas na cota de seis metros, não na cota três ou menos do que isso, a ponto de os equipamentos elétricos terem sido inundados. Então tem vários problemas no sistema de proteção, alguns de concepção. É muito pueril dizer que é só (falta de) manutenção. Compramos mais de 50 portas de aço inox para evitar o retorno da água, mais de 20 motores elétricos, mais de 20 chaves de partida eletrônica. O que mais tem é manutenção, só que o sistema se mostrou incapaz de vencer uma cheia extraordinária.
Mas a cota de segurança para Porto Alegre, se não for de seis metros, é de quanto para o Dmae?
É que todo cálculo que tu faz, de engenharia, não (considera) só o nível da água por cima ou por baixo. Tem de considerar a estrutura dos equipamentos de bombeamento, dos prédios, como eu falei, das casas de bomba, isso certamente previa uma cota inferior a seis. Com 4m50cm, as bombas já não tiveram mais capacidade de bombear.
Mas uma coisa é o sistema de bombas, outra são o muro e os diques, que não deveriam deixar passar água em um nível abaixo de seis metros. Viu-se água infiltrando muito abaixo disso, e é por isso que hidrólogos apontam que faltou manutenção ao longo de muitos anos, sob várias administrações. O senhor diz que vedar as comportas com borracha não resolveria, mas um sistema não deveria atender os itens de segurança mais simples e, a partir daí, os mais complexos? Se uma comporta cede por inteiro, isso também não é falta de manutenção? Não inclui fazer testes para saber se a estrutura está segura de fato?
O sistema vai ter de ser todo repensado
DARCY NUNES
Diretor-adjunto do Dmae
Vamos lá, a gente também identificou três pontos de falha nos diques. Tem lugares que entrou água na cidade e nós estamos providenciando proteção para evitar que aconteça de forma tão rápida. Lá na divisa com Canoas, perto da (Avenida) Ernesto Neugebauer, identificamos um ponto de entrada de água. Em cima da própria freeway, entre a ponte nova e a BR-448, a pista foi interditada porque tinha água sobre a pista, e a freeway é para ser um dique. Junto ao Gasômetro, identificamos uma baixada por onde também entrou água. Os portões que sofreram mais não suportaram o esforço. Então não é simplesmente um vedamento de fresta, eles se deformaram. Tem muita coisa que não é manutenção. Isso envolve uma melhoria, com cálculos estruturais e hidrológicos, pra poder fazer alterações até no sistema de diques. O sistema vai ter de ser todo repensado. As casas de bomba precisam de um grande aumento de capacidade. Precisa aumentar tudo, e tem outra questão que é o dique do (bairro) Sarandi.
No Sarandi, o dique extravasou. Qual a cota da proteção lá?
Os diques lá se mostraram numa cota em torno de 3m20cm, se mostraram numa cota insuficiente. Vão ter de ser todos alteados. A gente já estima aqui mais de R$ 130 milhões só para erguer a cota de proteção dos diques. Esse evento foi uma prova de fogo que estamos usando para replanejar o sistema.
Essas chuvas devem ser cada vez mais frequentes. Já há uma estimativa de quanto tempo e dinheiro serão necessários para termos um sistema seguro?
Ainda estamos concentrados em restaurar a cidade. O número que a gente já conhecia para fazer a expansão da macrodrenagem da cidade estava em torno de R$ 5 bilhões, mas agora precisaremos de muita coisa além dessa expansão. Eu só queria deixar bem marcado que refutamos qualquer afirmação de que houve falta de manutenção. O que mais se faz é manutenção mecânica e elétrica.
Mas o senhor avalia que não há pelo menos algum grau de problema de manutenção quando temos comportas vazando, uma que não resistiu à força da água e apenas quatro de 23 casas de bomba funcionando? Não envolve garantir que o sistema funcionará quando for preciso?
Tem muitos problemas, e os portões estão incluídos neles. É problema estrutural do portão. Isso não é manutenção, é concepção. Então a gente refuta.
Mesmo que os portões tenham vazado água na cheia anterior, que não chegou nem perto da atual?
Muito abaixo, mas já era bastante, né? O nível de de 3m17cm já havia sido o maior desde (a enchente de) 1941.
Sim, mas apenas 17 centímetros acima da cota de inundação (nível em que o Guaíba começa a avançar em direção ao muro, colocando à prova o sistema de proteção)...
Pois é, mas já foi o maior evento desde que o sistema foi construído. Aí o segundo evento maior, desde que o sistema foi construído, foi em novembro. E o terceiro foi agora.
Em todos eles, os portões falharam.
Nós tivemos, nos últimos oito meses, três eventos de superação e testagem do sistema pela primeira vez.