O Rio Grande do Sul ainda está passando pela sua maior tragédia climática da história. Com chuvas que não param de castigar o Estado, os gaúchos estão tendo que lidar com o repique do Guaíba, que novamente ultrapassou a cota dos 5 metros nesta segunda-feira (13). Para evitar que este cenário se repita, um grupo de professores e pesquisadores da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) está propondo o Programa Gaúcho de Emergência Climática e Ambiental.
Considerando que a devastação enfrentada pelo Estado seja decorrente das mudanças climáticas que estão em curso e tendem a se agravar nos próximos anos, a iniciativa pretende criar mecanismos de defesa e previsibilidade para enfrentar, de forma permanente e sistemática, os desafios futuros. Assim, foram elaboradas seis ações, sendo três vinculadas à emergência, monitoramento e alerta, e três focadas em serviços para mitigação e resiliência.
À frente da iniciativa está a professora de Física da UFRGS Marcia Barbosa, que pediu exoneração do cargo de secretária de Políticas e Programas Estratégicos, do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI) para se dedicar ao Estado. Ela ressalta que um dos pontos essenciais dentro deste processo é o aumento do monitoramento de riscos, com um foco exclusivo no solo gaúcho, entregando dados em janelas de tempo menores, mas com ações mais efetivas e rápidas, com pessoas preparadas para agir.
— A ideia é que as universidades produzam um assessoramento em rede para dizer o que a gente tem de melhor de ciência para montar um serviço de monitoramento mais discretizado do que o Cemaden (Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais) produz. Será gerada, então, uma sequência de alertas que vão ir até a ponta de quem tem que atuar, avisar a população, mas também a Defesa Civil, para que as pessoas se prepararem. E não fazer como aconteceu agora, que estava todo mundo meio desnorteado — diz a professora.
Reconstrução inteligente
Diante das enchentes, bairros e até mesmo cidades foram arrasados pela força das águas. Mas, afinal, é necessário levar estas comunidades para outros locais, para que fiquem seguras das próximas cheias? Não necessariamente. Os pesquisadores da UFRGS indicam que cada caso é único e é possível pensar em projetos diferentes para cada município do Estado.
— As pessoas estão sendo muito precipitadas em achar que a solução imediata é ir para outro lugar quando, na verdade, a gente tem que fazer uma análise daquele território para identificar qual é solução para ele. Em algumas situações, as mais extremas, sim, a orientação será: "Esse bairro é melhor não ficar aqui" — explica a professora. — O assoreamento dos rios é resolvível se a gente tiver, por exemplo, mais árvores. Então, assim, existem soluções, mas são customizadas. Não tem bala de prata, mas a ciência tem respostas para isso e planos-diretores terão que ser reanalisados.
As pessoas estão sendo muito precipitadas em achar que a solução imediata é ir para outro lugar quando, na verdade, a gente tem que fazer uma análise daquele território para identificar qual é solução para ele.
MARCIA BARBOSA
Professora de Física da UFRGS
A proposta dos cientistas ainda passa pela questão da educação ambiental, seja ensinando às pessoas a terem uma vida mais sustentável e menos poluente, até na forma em que a população constrói casas. Este tipo de trabalho tem que começar a partir da escola e, segundo Marcia Barbosa, esta mudança de pensamento, que vem junto com o treinamento de reorganização do uso da terra, é comum em países que possuem desastres climáticos corriqueiramente — como é, cada vez mais, o caso do Brasil.
— Nós não podemos cair no erro de reconstruir do mesmo jeito de antes, porque na próxima cheia a gente vai incorrer o mesmo problema. Precisamos olhar para a terra e ter um plano de como a gente vai trabalhar reflorestamento na beira dos rios, a nossa cidade, as construções, as novas pontes — explica.
O poder público e a verba
Para que as medidas descritas acima — além das outras (veja abaixo) — deem certo, porém, Marcia e seus parceiros de pesquisa — que começou na UFRGS, mas, agora, está ganhando novos personagens, de outras universidades — salientam que é de extrema importância a criação de um estreito diálogo dos municípios e o Estado com a ciência, empregando tecnologias e planejamento. Mas, para isso, é preciso que o poder público dê ouvidos para a iniciativa.
— O único grupo que ainda não me contatou foi o poder público. E olha que eu já enviei o projeto para o Ministério do Meio Ambiente, para o Ministério da Agricultura e Pecuária, para vários, mas todos dizem que quem tem que começar isso é o Estado. Eu reconheço que, neste momento, prefeitos, prefeitas e o governador estão envolvidos em salvar vidas, mas eles têm que começar a pensar no que vem a seguir. Essa rede está ofertando trazer soluções disruptivas e que parem de pé na próxima enchente, que certamente ocorrerá — salienta a professora.
O projeto, que ataca por várias frentes, garante Marcia, demandará de um amplo trabalho das universidades, as quais ela garante que estão capacitadas para tal. E, na questão financeira, ela explica que sai "muito mais barato" do que a reconstrução que teve que ser feita em Nova Orleans, por causa do Furação Katrina (cerca de US$ 190 bilhões), por exemplo. Os Estados Unidos, de acordo com a professora, "não têm universidades públicas" e, por isso, por lá, este serviço de assessoramento proposto pelos pesquisadores "custou uma fortuna".
Ela ainda garante que diversos empresários locais estão interessados na iniciativa. E, tão logo a situação das enchentes se acalmarem, a pesquisadora pretende fazer um evento para lançar o projeto e, assim, pressionar o poder público para tentar implantar as ideias o quanto antes — uma vez que, após a tragédia, o tema tende a ser deixado de lado e acaba caindo no esquecimento.
O Programa Gaúcho de Emergência Climática e Ambiental, então, pretende associar pesquisadores e gestores municipais, estaduais e federais, com acadêmicos de diversas universidades do Estado, que formarão a Rede de Emergência Climática e Ambiental (Reca), provendo o embasamento técnico e científico dos temas relacionados aos serviços propostos. A ideia é que todo o processo de construção de cidades e reconstrução de estradas, pontes e habitações que serão feitos no Rio Grande do Sul receba o assessoramento técnico e científico da Reca. E, agora, com verbas destinadas para a reconstrução do Estado, Marcia pede atenção aos governantes:
— O meu grande medo é que esse financiamento seja usado para construir exatamente como era antes. Então, governantes, por favor, antes de sair gastando esse dinheiro, ouçam o que a ciência tem para dizer.
Confira os seis serviços propostos pelos pesquisadores
Primeiro Grupo: monitoramento e alerta com a responsabilidade de acompanhar, orientar e estabelecer uma comunicação entre agentes públicos e sociedade em momentos de emergência.
1 - Serviço Climático RS: responsável por ampliar o monitoramento meteorológico, hidrológico e oceânico, por meio da expansão da base de dados e do desenvolvimento de modelos de alta precisão, bem mais fidedignos, bem como o emprego de cenários futuros (2040), gerados com modelos já validados pelo Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC). Este serviço será responsável por prover prognósticos de tempo e de clima bem como de seus potenciais impactos capazes de se traduzir em desastres através de um sistema de alertas.
2 - Serviço de Impactos na Capacidade Estadual: focado no fornecimento de água, de saneamento básico e energia, tanto para abastecimento humano, como para a manutenção de serviços essenciais como hospitais, espaços públicos, entre outros. Este serviço, além de monitoramento, irá criar um sistema de alertas.
3 -Serviço de Construção de Capacidades: a Rede de Emergência Climática e Ambiental (Reca) terá a responsabilidade de treinar, capacitar e formar os recursos humanos estatais, privados e mistos com o propósito de atuar em ações de adaptação e construção de resiliência frente a emergências climáticas. Isto inclui: formação de gestores sobre previsão de riscos, organização de equipes de intervenção, planejamento da infraestrutura, avaliação de resultados, entre outros, de modo a dotar a Defesa Civil, assim como outros atores, para criar um sistema de apoio e proteção para situações de emergência. Este sistema igualmente estará associado aos dois anteriores centralizando por meio de sistema de alertas.
Segundo Grupo: adaptação, mitigação e resiliência.
4 - Serviço de Educação Climática e Ambiental: a Reca desenvolverá um amplo processo educacional que visa tanto a disseminação de informação científica e conhecimentos gerais sobre as mudanças do clima em curso assim como preparar a população para situações de emergências, como evacuações e deslocamentos rápidos e forçados. O serviço de educação climática e ambiental também busca gerar maior consciência ambiental, fomentar a sensibilidade para acolhida de campanhas de informação nas redes sociais e comunitárias.
5- Serviço de Infraestruturas Resilientes: escritório de projetos para o desenho de novas cidades, urbanismo e edificações bem como de projetos de relocação ou reconstrução de prédios, estradas, pontes e sistemas de água e esgoto usando tecnologias sustentáveis e de baixo custo, mas que sejam capazes de resistir aos eventos climáticos que cientistas do clima preveem para o RS. Desenvolver guias e orientações de como desenvolver obras de engenharia (prédios, pontes, estradas, etc.) resistentes a eventos meteorológicos, hidrológicos e geodinâmicos extremos.
6 - Serviço de Proteção à Terra , Ordenamento Territorial e Produção de Alimentos com Base Ecológica: terá como função orientar ações integradas dos poderes públicos federal, estadual e municipais de adaptação às mudanças climáticas para a proteção e a restauração da vegetação nativa florestal e não florestal por meio de Reservas Legais, Áreas de Preservação Permanente e restrições para autorizações de supressão, além da promoção de paisagens agrícolas mais resistentes, resilientes e regenerativas a extremos de seca e de chuva, a partir da diversificação de cultivos e práticas agrícolas que se fundamentam em princípios ecológicos.