O número 772 da Rua Nossa Senhora da Boa Viagem, na Ilha da Pintada, em Porto Alegre, já passou por algumas enchentes nos últimos anos, mas nenhuma como a que tomou a cidade no final de setembro. É o que conta a recicladora Maria Ana Ávila Macedo, 71 anos. Ela é conhecida na região como Vó da Reciclagem e, há 30 anos, vivia no mesmo imóvel – ultimamente acompanhada pela filha e por quatro netas – que, agora, foi reduzido a lama e móveis destruídos.
– Minha filha me acordou às 3h30min. Eu achava que daria pra ficar, não queria sair da minha casa. Dói ver ir embora tudo que eu ganhei. Foi a pior enchente da minha vida – lembra, com lágrimas nos olhos, da madrugada de 14 de setembro.
A catadora, que não tem as pernas, já é conhecida pelos leitores do DG. Em agosto de 2011, o jornal contou que a Vó da Reciclagem precisava reformar a carroça que usava no recolhimento de material reciclável pela ilha e, um mês depois, que ela havia conseguido ajuda para recauchutar o veículo. Já no ano passado, o pedido era para o conserto da Kombi, doada por um vizinho, que passou a usar para trabalhar depois que sofreu um acidente em que a carroça ficou destruída. O estrago do automóvel ocorreu na enchente que acometeu a Capital em 2015, e desde então, está sem funcionar.
“Cena de guerra”
As marcas nas paredes denunciam que, dessa vez, a água chegou a aproximadamente um metro de altura. Já o mau cheiro, que poucos dos pertences da família serão recuperados. Filha da Vó da Reciclagem, a pescadora Carla Graziele de Ávila, a Grazi, 43 anos, descreve como “cena de guerra” o que viu quando foi na casa pela primeira vez após a enxurrada.
Foi ela quem mostrou o local para a reportagem do DG já que, no dia da visita, sua mãe ainda não tinha condições de ir à residência. A família está vivendo em uma casa locada via aluguel social da prefeitura, na mesma rua em que moram. Mesmo que não estivesse chovendo havia alguns dias, ainda era tanta a água acumulada na rua que formava pequenas ondas e dificultava o acesso ao portão. Além disso, o estado emocional da idosa ainda não a permitia pensar na casa sem cair em lágrimas, quem dirá vê-la.
– A gente ergueu (os móveis) mais do que das outras vezes (que houve enchentes), mas não foi o suficiente. Ninguém esperava. Não levamos nada, a prioridade era tirar a nós e os documentos, porque depois é uma dificuldade para refazer tudo – narra Grazi.
Perdas e tristeza
Para Maria, a parte mais difícil é ver a tristeza das netas, que perderam roupas, livros e material escolar:
– O pior é vê-las pedirem alguma coisa e não ter para dar.
Deixar a casa foi difícil para a Vó da Reciclagem. E ir embora da Ilha da Pintada nem é uma opção, mesmo com as dificuldades enfrentadas.
– Eu nasci e cresci aqui – é o que alega para a filha quando esta comenta sobre a vontade de se mudar.
– Eu não tenho mais psicológico para enchente – lamenta Grazi.
Mas Maria, que não se entrega, mantém a cabeça erguida esperando a água baixar eavolta ao seu lar.
– Eu rezei tanto, e ontem eu enxerguei a areia (em frente à casa de aluguel) – conta.
Família não acredita em salvação para Kombi
A Kombi que tanto ajudava a família antes de parar de funcionar estava sendo consertada, aos poucos, por Grazi. Começou pelo motor. Depois, seria a vez da troca dos pneus. Mas, agora, a pescadora não acredita que há salvação para o veículo. O carro abrigava sacos de sucata que ainda não tinha sido vendida mas, quando Grazi foi checá-lo, ao saírem do abrigo em que estavam, já não havia mais nada. Então, durante o período em que é beneficiada pelo aluguel social, a família – elas e as quatro meninas que criam, todas netas de Maria: a filha de Grazi, de 13 anos, e as outras, de sete, 12 e 19 anos, suas sobrinhas –, se vira como pode. Elas fazem algumas coletas de sucata para vender e, com o dinheiro, poder comprar comida.
A mobília da casa vinha toda de doações e coletas da família pelas ruas. Agora, Maria e Grazi esperam reconstruir o lar do mesmo jeito. Para se sentir mais em casa no imóvel alugado, Maria conseguiu, no abrigo para onde foram levados os moradores da ilha no dia em que foram tirados de casa, tapetes para deixar no chão e se arrastar pelos cômodos, em vez de usar a cadeira de rodas, que é como prefere se locomover.
Ajude a Vó da Reciclagem
/// A família aceita roupas e alimentos. Principalmente, roupas e calçados para as meninas. Além disso, Maria sonha, há anos, em ganhar uma cadeira de rodas motorizada para ter mais autonomia.
/// A vaquinha para o conserto da Kombi pode ser acessada pelo site vakinha.com.br/3916046.
/// Doações podem ser feitas pelo Pix (telefone) 51984202983.
Produção: Caroline Fraga