No final dos anos 1970, os aparelhos repressores das ditaduras militares do Cone Sul resolveram agir em uníssono. Trocaram informações, colaboraram em sequestros de opositores, cometeram assassinatos. Foi nesse contexto que um grupo de gaúchos defensores da democracia, resolveu reagir contra os desmandos, buscando brechas na lei e sem violência. Surgia ali uma das mais importantes entidades a batalhar pela dignidade dos perseguidos políticos, contra a tortura e pela volta da normalidade democrática: o Movimento de Justiça e Direitos Humanos. Primeiro, informalmente, quase na clandestinidade, em 1978. Depois, oficialmente, fundado em 25 de março de 1979, mas apenas por força de uma sentença judicial, já que o governo militar não via com bons olhos a iniciativa.
Pois esta semana o MJDH comemora 40 anos do seu prêmio de jornalismo, dedicado a quem batalha pela dignidade humana e aqueles velhos preceitos da revolução francesa: liberdade, igualdade e fraternidade. A cerimônia acontece neste 9 de agosto, às 9horas, no Multiplaco Liberdade, localizado no Cais Embarcadero, no centro da capital. Essa ocasião faz parte das comemorações do mês da advocacia promovidas pela OAB/RS.
Uma excelente ocasião para lembrar a história do MJDH, que começa no auge da chamada Operação Condor, plano de colaboração entre ditaduras, com conhecimento e aprovação da CIA norte-americana.
Foi nesse período sombrio que aconteceu, justamente em Porto Alegre, um dos casos mais emblemáticos dessa cooperação: o sequestro dos militantes de esquerda uruguaios Universindo Diaz e Lilian Celiberti (esta, com seus dois filhos menores), em 12 de novembro de 1978. Dois jornalistas testemunharam o sequestro, cometido por policiais civis do Departamento de Ordem Política e Social (Dops) e militares do Uruguai.
Avisados, defensores da democracia que viriam a fundar o Movimento de Justiça e Direitos Humanos denunciaram na mídia a ação ilegal. Estavam nesse grupo o futuro presidente do MJDH, Jair Krischke, e o advogado Omar Ferri. O grupo expôs os policiais envolvidos e batalhou pela libertação de Lilian e Universindo, que estavam encarcerados num presídio em Montevidéu e só foram soltos cinco anos depois. A denúncia do sequestro foi a primeira referente a ações da Operação Condor que resultou em condenação (dos policiais envolvidos). E ainda rende frutos: em novembro de 2022, dois coronéis uruguaios foram presos, como resultado de ação movida pelo MJDH.
Tortura e assassinatos
A clandestinidade do MJDH durou até o fim do Ato Institucional Nº 5, o dispositivo mais marcante da ditadura militar no Brasil, que resultou em cassação de milhares de opositores políticos, exílio para outros milhares e na morte de centenas. Com a revogação, em 1979, o movimento passou a agir oficialmente. A participação de jornalistas nas denúncias da entidade levou à criação, em 1984, do Prêmio Direitos Humanos de Jornalismo.
Nascido regional, o prêmio logo ganhou importância nacional e alcançou inclusive status internacional. De início, a premiação foi marcada pela luta do momento: pelo retorno à democracia no Cone Sul. A atuação da entidade contribuiu para a preservação da vida de milhares de perseguidos políticos, com ajuda para o asilo ou o exílio em países europeus. Isso era obtido em estreita colaboração com o Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (ACNUR).
Com o fim da ditadura, ficou claro que a tortura e os assassinatos pela polícia eram prática cotidiana no Brasil, sobretudo contra suspeitos de cometer crimes comuns. E o Movimento de Justiça e Direitos Humanos começou a combater isso. Várias reportagens denunciando abusos policiais contra presos foram premiadas entre 1985 e 1988 (ano em que a nova Constituição Federal acabou com o direito dos policiais de invadirem residências sem mandado judicial).
Duas delas são exemplares. Em 1985, o MJDH apresentou à imprensa fotos de um preso sendo torturado num pau-de-arara. O nome dele era Antônio Clóvis Lima dos Santos, o Doge, suspeito de ter assaltado um caminhão de bebidas. As fotografias foram cedidas por um inspetor da Divisão de Investigações da Polícia Civil. A repercussão foi tamanha que o então Chefe de Polícia acabou afastado do cargo por ordem do governador Jair Soares. Os policiais responsáveis pela tortura foram processados.
Outro caso notório é o do Homem Errado. Em 1987, o operário Julio César de Melo Pinto sofreu um ataque epilético quando assistia ao cerco da Brigada Militar a assaltantes num supermercado, em Porto Alegre. Ele feriu o rosto ao cair e, pelo sangue, foi confundido pelos policiais com um dos ladrões. Pinto foi preso por um grupo de PMs, colocado no banco de trás de uma viatura e removido do local. Ele não foi mais visto com vida. Reapareceu horas depois, morto com vários tiros, com seu corpo sobre uma maca no Hospital de Pronto-Socorro (HPS). A contradição foi mostrada, em imagens, pelo fotógrafo de Zero Hora Ronaldo Bernardi e denunciada posteriormente pelo MJDH. Vários policiais militares foram presos e condenados.
Contra o racismo e as ditaduras
O MJDH também tem tradição na luta contra o racismo. Em 1986, denunciou ao Ministério Público o conteúdo racista das obras da Editora Revisão, de Siegfried Ellwanger Castan (S.E. Castan), de Porto Alegre. Após alguns anos de embate jurídico, foi determinada a busca e apreensão dos exemplares de algumas obras da editora, como Holocausto Judeu ou Alemão? Nos bastidores da mentira do século, Os Protocolos dos Sábios de Sião e Hitler: Culpado ou Inocente?. Em 1996, após ser absolvido em primeira instância, Castan foi condenado por unanimidade pelo Tribunal de Justiça-RS. Em 2003, o Supremo Tribunal Federal o condenou de forma definitiva por racismo.
Pioneiro na defesa de presos políticos, o MJDH sobrevive em muito graças ao empenho pessoal de seu fundador e atual presidente, Jair Krischke. E, apesar das causas modernas, a entidade não esquece o passado. Foi impulsionadora da prisão do coronel uruguaio reformado Manuel Cordero, acusado de violações de direitos humanos em seu país e na Argentina, que residia na cidade gaúcha de Santana do Livramento. E, recentemente, conseguiu que fossem denunciados na Itália quatro envolvidos com a ditadura militar brasileira, que teriam participado de tortura e desaparecimento de cidadãos italianos. Esse é um dos raros embates do movimento de direitos humanos em que não houve condenação. Isso porque os réus morreram durante o andamento do processo judicial.