Por Fernanda Frizzo Bragato
Docente no Programa de Pós-graduação em Direito na Unisinos, bolsista de produtividade em pesquisa do CNPq
O Brasil e o mundo têm assistido estarrecidos às imagens trágicas de indígenas yanomami definhando em pele e osso, enquanto autoridades e estudiosos debatem se estamos ou não diante de um genocídio. Enquanto isso, todos querem entender melhor este que é considerado o mais grave e hediondo crime internacional, previsto no art. 2º da Convenção de 1948 contra o Genocídio e no art. 1º. da Lei nº 2889/56.
As vítimas do genocídio não são indivíduos aleatórios ou escolhidas pela sua condição pessoal, mas porque são membros e pertencem a um grupo que se distinga pela nacionalidade, etnia, raça ou religião. O alvo do crime de genocídio não é o indivíduo em si, mas o próprio grupo que, pelas suas características, é identificado para ser destruído.
O genocídio é distinto de outros crimes na medida em que exige uma intenção especial, ou dolus specialis, que consiste na intenção do agente de produzir o resultado específico de destruir, no todo ou em parte, um grupo nacional, étnico, racial ou religioso, como tal. Esse propósito pode ser alcançado por meio dos seguintes crimes, também dolosos: matar membros do grupo; causar lesão grave à integridade física ou mental de membros do grupo; submeter intencionalmente o grupo a condições de existência capazes de ocasionar-lhe a destruição física total ou parcial; adotar medidas destinadas a impedir os nascimentos no seio do grupo; efetuar a transferência forçada de crianças do grupo para outro grupo.
O genocídio pode ser cometido tanto por meio de ações quanto omissões. O Tribunal Penal Internacional para Ruanda condenou à prisão perpétua, por crime de genocídio e outros, os políticos Jean Kambanda e Jean-Paul Akayesu, respectivamente primeiro-ministro e administrador de uma comuna na época dos fatos. Segundo o Tribunal, mesmo tendo pleno conhecimento dos fatos, meios para agir e dever de proteger a população, ambos deixaram conscientemente de tomar medidas razoáveis e apropriadas para conter os massacres dos tutsis e dos hutus moderados.
Políticos que se abstêm de agir, quando assim deveriam por imperativo legal, levando à ocorrência, por exemplo, de mortes ou de graves lesões físicas ou mentais de membros do grupo, respondem por genocídio, se a isso estiver ligada a intenção de destruir o grupo total ou parcialmente.
A intenção costuma ser um elemento de difícil prova, embora não se exija motivação específica para o crime (ódio, interesse econômico ou outro) ou premeditação. O dolo especial é elemento constitutivo do crime, que exige que o agente procure claramente produzir o resultado: destruição total ou parcial do grupo. O que importa é que haja ações ou omissões que indiquem a existência de um plano, geralmente uma ação coordenada e organizada, como foi o caso do genocídio de Ruanda, com distribuição de armas, discursos inflamados contra o público alvo e ordens para realizar os atos genocidas.
No entanto, no julgamento do general Radislav Krstic, condenado a 35 anos de prisão pelo genocídio bósnio-muçulmano na cidade de Srebrenica, o Tribunal Penal Internacional para a ex-Iugoslávia entendeu que onde não houve evidência direta de intenção genocida; esta pode ser inferida a partir das circunstâncias de fato do crime. A intenção pode ser manifestada por um padrão geral de violências suficiente para mostrar que a política adotada não pode ser senão a de destruir o grupo alvo. O Tribunal também entendeu que o método escolhido pelos autores não precisa ser o mais eficiente para atingir o objetivo de destruir o grupo. Mesmo quando a destruição resta incompleta, a ineficácia do método escolhido por si só não exclui a intenção genocida.
Ou seja, a política de um governo que adote, deliberadamente, uma direção tal que levará inevitavelmente a graves lesões físicas e mentais ou à morte lenta de um grupo alvo protegido pela Convenção pode indicar o dolo especial do genocídio por parte dos envolvidos na condução dessa política.
Em relação aos yanomami, responsabilizar criminalmente quem os conduziu a essa tragédia humana faz parte de um processo de reparação e de prevenção. Uma investigação sobre a natureza genocida desse crime é necessária e razoável diante dos precedentes que se aproximam deste caso. Mas o mais urgente, no momento, é o Estado cumprir o seu dever de salvar as vidas yanomami e de adotar políticas que evitem a repetição de novas atrocidades contra esse povo, a começar pelo combate do garimpo no interior daquela terra indígena.