Marcada por critérios mais rígidos para habilitação e punições rigorosas para infrações, a maior mudança na legislação de trânsito do país completa 25 anos neste fim de semana. Em 22 de janeiro de 1998, entrava em vigor o Código de Trânsito Brasileiro (CTB). Na época, práticas hoje consideradas corriqueiras, como uso de cinto de segurança e transporte de crianças apenas no banco traseiro de veículos, ganharam destaque no dia a dia de motoristas e dos agentes de fiscalização. Em duas décadas e meia de CTB, é possível observar mudanças de comportamento por parte dos condutores e retração em alguns indicadores de segurança.
Parte dos especialistas ouvidos pela reportagem aponta que o código contribuiu para a redução de mortes no trânsito, mas destaca que avanço maior em segurança passa por outras medidas, como modernização das normas e maior investimento em fiscalização e educação. Outra corrente afirma que o conjunto de regras e punições não conversa com as mudanças de comportamento observadas atualmente na sociedade.
Engenheiro civil e doutor em Transportes da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), João Fortini Albano afirma que as mudanças impostas pelo CTB ajudaram a reduzir o número de mortes e acidentes no trânsito nos últimos anos frente a uma ação mais dura e punitiva em relação às infrações:
— Nós observamos uma diminuição no número de acidentes em função dessa postura dos usuários diante da legislação rigorosa. (...) Tem uma postura de direção defensiva e também um comportamento de não ser multado. A partir dessa conjugação de fatores, o nosso trânsito passou a ter um padrão geral com melhores resultados.
Sobre o fato de o país ainda registrar números elevados de acidentes e mortes, mesmo que em patamares menores do que em anos anteriores, Albano afirma que é difícil haver redução brusca nesses indicadores apenas com legislação. O especialista cita a necessidade de reforço e investimento em educação para atingir um nível ideal de segurança viária.
O diretor-geral adjunto do Departamento Estadual de Trânsito (Detran-RS), Rafael Mennet, avalia que a municipalização é um dos principais impactos do CTB. Mennet afirma que a extensão do papel fiscalizador ajudou a criar um ambiente mais organizado para o tráfego de veículos:
— Esse papel fiscalizador acabou rapidamente repercutindo nos dados de acidentalidade. Não tão somente naquele papel de autuação, do impacto na CNH do condutor. Mas deu uma civilizada no trânsito de uma maneira geral.
O Detran-RS não tem dados de acidentalidade em período anterior a 2007. Portanto, não é possível comparar números atuais de acidentes fatais e de mortes no trânsito com o primeiro ano de CTB. Dentro do levantamento do Detran-RS, com dados de 2007 a 2022, é possível observar redução de 26% nas mortes em acidentes na comparação entre 2021, ano mais recente com dados fechados até dezembro, e 2010, pico de óbitos no período (veja mais no gráfico ao final desta reportagem). A série histórica mostra oscilações no indicador nos últimos anos, mas com total de mortes com certa distância de 2 mil — patamar registrados entre 2010 e 2012.
Nós observamos uma diminuição no número de acidentes em função dessa postura dos usuários diante da legislação rigorosa. (...) Tem uma postura de direção defensiva e também um comportamento de não ser multado. A partir dessa conjugação de fatores, o nosso trânsito passou a ter um padrão geral com melhores resultados.
JOÃO FORTINI ALBANO
Engenheiro civil e doutor em Transportes da UFRGS
O diretor-geral adjunto do órgão relaciona as reduções nos números de mortes e de acidentes em períodos recentes à influência do CTB. Em relação ao aumento nos óbitos em 2021 ante 2020, afirma que trata-se de efeito da volta da circulação após o período mais crítico da pandemia de coronavírus.
O presidente do Instituto Brasileiro de Segurança no Trânsito (IST), David Duarte Lima, destaca que o CTB cumpriu o objetivo de reduzir acidentes e mortes em vias nos dois primeiros anos de vigência. Atualmente, o código está desatualizado e sofre com dois problemas principais que passam pelo poder público e usuários do sistema. Na parte dos governos, o especialista destaca que existe uma postura de usar o regramento para garantir uma fonte de arrecadação, pensando mais na linha da punição do que de educação e prevenção. Em relação aos usuários, Lima cita uma espécie de exploração de pontos cegos do sistema:
— O cidadão, os condutores, aprenderam que, com a ineficiência e inoperância do Estado, teria como cometer infrações sem ser punido. Ele aprendeu a driblar o Estado, e a violência no trânsito continuou.
Fiscalização municipalizada, punição e novos hábitos
Reportagens de Zero Hora publicadas nos primeiros dias de vigência do CTB (veja logo abaixo), em 1998, mostravam as tentativas de adequação às novas regras. Pedestres atravessando a rua em locais proibidos, motoristas em faixa dupla e sem cinto de segurança estão entre os flagras da época. Algumas das dúvidas da população diziam respeito a itens obrigatórios para motociclistas, tipos de sapatos permitidos para condução e onde é permitido cruzar a via a pé.
Além de mudar o cenário no trânsito, o CTB também estabeleceu critérios para a relação entre pedestres, motoristas e outros usuários. Dentro desse ordenamento, surgiu o sistema de pontos na Carteira Nacional de Habilitação (CNH) e um extenso artigo que categoriza uma série de infrações e punições para cada uma delas. Dados do Detran-RS mostram que a curva do registro de infrações cresceu exponencialmente desde a implementação do CTB. No acumulado de 2022 até novembro, foram anotadas 2,9 milhões de multas no Estado, segundo levantamento do departamento. Esse montante é 370% maior do que o anotado em 1998 (veja mais no gráfico ao final desta reportagem).
Com o advento do CTB e a municipalização, cada município tem a possibilidade e a legitimidade de fazer concurso para agente de trânsito, treinar esses servidores e colocar na rua um número expressivo. O que em 1998 era inimaginável.
RAFAEL MENNET
Diretor-geral adjunto do Detran-RS
O diretor-geral adjunto do Detran-RS afirma que esse aumento ocorre diante de maior fiscalização provocada pelo CTB, que ainda aumentou o número de agentes específicos para a área de trânsito ao expandir essa responsabilidade para os municípios. Mennet destaca que integrantes da segurança pública, como policiais militares, acumulavam o monitoramento do trânsito com outras atribuições antes do CTB.
— Era generosamente pesado esse papel, de modo que a fiscalização de trânsito ficava de certo modo prejudicada. Com o advento do CTB e a municipalização, cada município tem a possibilidade e a legitimidade de fazer concurso para agente de trânsito, treinar esses servidores e colocar na rua um número expressivo. O que em 1998 era inimaginável — ressalta Mennet.
O professor João Fortini Albano afirma que, por ser uma legislação punitiva, o código provocou uma mudança de comportamento nos usuários. E reforça que isso ocorre tanto na questão preventiva, com motoristas mais conscientes, quanto no âmbito do receio de ser multado e sofrer outras sanções.
— Provocou uma mudança no comportamento dos motoristas para melhor. Melhorou as condições de segurança do nosso trânsito — diz Albano.
Demandas para maior efetividade
Os especialistas ouvidos pela reportagem apontam que é necessário atacar alguns pontos importantes dentro do sistema de trânsito para garantir maior efetividade no combate à mortalidade nas vias. Mais investimento em educação, infraestrutura e fiscalização estão entre as principais demandas citadas nesse sentido.
A criadora do Vida Urgente: Fundação Thiago Gonzaga e diretora institucional do Detran, Diza Gonzaga, afirma que o avanço na luta contra os acidentes e mortes no trânsito passa pelos "três es": educação, esforço legal e engenharia de trânsito. No campo da educação, ela cita iniciativa do Detran-RS na criação da escola de trânsito, que conta com diversos materiais e cursos na área. A diretora reforça a necessidade de avanços nos outros pontos do tripé:
— Temos que cumprir esses três pontos. Educação, legislação — que engloba a fiscalização eficiente e punição, porque a impunidade também gera violência — e engenharia. É importante termos estradas duplicadas. Estamos conseguindo avançar nisso, mas ainda faltam muitas estradas duplicadas.
Temos que cumprir esses três pontos. Educação, legislação — que engloba a fiscalização eficiente e punição, porque a impunidade também gera violência — e engenharia. É importante termos estradas duplicadas. Estamos conseguindo avançar nisso, mas ainda faltam muitas.
DIZA GONZAGA
Criadora do Vida Urgente: Fundação Thiago Gonzaga e diretora institucional do Detran
O professor João Fortini Albano avalia que é necessário aperfeiçoar o código e demais regramentos no trânsito por meio de resoluções para atualizar o sistema. Além disso e do reforço na educação, que vai desde o Ensino Básico até o Superior, Albano cita a necessidade de maior fiscalização para inibir excessos e riscos nas vias:
— Um terceiro ponto seria a intensificação da fiscalização. Porque se o usuário sabe que a legislação é forte, se ele tem medo da aplicação e das consequências da multa, mas não vê fiscalização, ele não obedece. Então, é necessário que junto com a educação e o aperfeiçoamento da lei exista uma fiscalização ostensiva para que o usuário veja os agentes na rua.
Já o presidente do IST afirma que o CTB está desatualizado e não incorpora as mudanças pelas quais o trânsito do país passou nos últimos anos. Como exemplo, Lima cita o aumento na frota de motocicletas e dos usuários de bicicletas. Diante da alta entre esses e outros condutores, é necessário agilizar mudanças no código para proteger esses atores e manter o trânsito mais seguro, segundo o especialista:
— Com o novo tipo de tráfego hoje no Brasil, o código já está em muitas de suas partes obsoleto. É preciso modernizar o código para as novas necessidades do tráfego no país.
Com o novo tipo de tráfego hoje no Brasil, o código já está em muitas de suas partes obsoleto. É preciso modernizar o código para as novas necessidades do tráfego no país.
DAVID DUARTE LIMA
Presidente do Instituto Brasileiro de Segurança no Trânsito
Outro ponto citado pelo dirigente é o investimento nos órgãos de fiscalização, com reforço no treinamento de agentes e busca por melhorias nos equipamentos e na tecnologia usados por essas forças.
— É necessário ter plano, metodologia, metas e objetivos. Tem que ter investimento, desde treinamento de técnicos, comunicação com a população, viabilização de projetos no sentido de redução dos acidentes de trânsito. E os governos, em todas as três esferas, não fazem isso — avalia Lima.
O presidente do IST afirma que o controle da velocidade e melhorias no sistema para evitar a soma de álcool e direção precisam estar no centro das políticas para reduzir as mortes em vias e rodovias.