Vivendo à base de medicamentos enquanto espera o laudo da perícia criminal, o namorado da enfermeira Elizandra Pereira Cunn, 41 anos, que morreu em um acidente com o próprio carro, na residência do parceiro, em 24 de abril, falou com a imprensa pela primeira vez desde a tragédia. O empresário de 49 anos, que pede para não ter o nome divulgado, afirma que além da dor da perda também sofre com o julgamento de pessoas que atribuem a ele a responsabilidade pela morte de Eliz.
— Estou sendo duplamente penalizado. Claro que nem se compara com o que aconteceu à minha companheira, mas além do trauma, fui oprimido, tratado como bandido — lamenta.
O homem já prestou dois depoimentos junto à Delegacia Especializada de Atendimento à Mulher (Deam) de Gravataí. No dia 9 de agosto, ele participou da reprodução simulada dos fatos solicitada ao Instituto-Geral de Perícias (IGP) pela delegada Fernanda Generali, titular da Deam.
A delegada explica que a reconstituição geralmente é solicitada quando há versões divergentes sobre os fatos, mas que neste caso foi pedida devido à complexidade da investigação. Ela pontua que já foram colhidos os depoimentos do namorado, de um vizinho, que foi o primeiro a chegar ao local, e de alguns familiares que conviviam com o casal.
De acordo com o IGP, nesta etapa da investigação a perita leu todo o inquérito e verificou as demais perícias que já haviam sido realizadas no local. Na sequência, ocorreu a parte prática, que foi a reprodução simulada na residência onde ocorreu o acidente. Neste momento, ocorre a etapa de redação do laudo, na qual é confrontado o que foi relatado pelas testemunhas com as evidências coletadas. O prazo para a conclusão deste laudo varia de 30 a 60 dias.
No dia do acidente
Durante 52 minutos de conversa com GZH, o empresário contou que a namorada estava na sua casa no dia do acidente porque na noite anterior, no sábado, foram a um show de sertanejo com dois casais de amigos. No domingo do acidente, dia 24 de abril, após almoçarem com um destes casais de amigos, havia ainda a festa de aniversário da irmã de Elizandra, que morava junto com ela na casa que era dos pais, próximo à Parada 64, em Gravataí. Ele conta que decidiu ficar em casa. Eliz se preparava para comemorar com a irmã quando o acidente aconteceu.
Segundo ele, o carro da enfermeira, um Chevrolet Tracker Premier, tinha um problema no freio de mão. Devido a isso, ela geralmente pedia ajuda ao namorado quando a alavanca travava. No domingo, segundo o homem, ela entrou no carro, deu a partida, engatou a ré, e não conseguiu soltar o freio de mão. O veículo estava dentro do pátio, ligado, em um terreno plano.
O empresário relata que estava dentro de casa quando ela pediu sua ajuda para soltar o freio de mão. Ela desceu do carro pela porta do motorista, deixou a porta aberta e deu espaço para que ele pudesse puxar a alavanca. Contudo, Elizandra teria esquecido de colocar o carro, que é automático, em ponto morto. Ele soltou o freio de mão pela porta do motorista, que ficou aberta, e deu um passo para trás, sem saber que a ré estava acionada.
É o tipo de situação que ninguém aceita. Eu tinha certeza que ela não ia morrer. Ela trabalhava na área da saúde e era muito querida por todos. Já estão fazendo quatro meses e só agora eu estou conseguindo falar.
NAMORADO DE ELIZANDRA
— No momento em que eu dei um passo para trás com a porta aberta, o carro começou a andar de ré bem devagar, em direção à Elizandra. Ela começou a andar para trás, com o carro andando no mesmo sentido. Eu disse para ela entrar e pisar no freio — conta.
Contudo, invés de pisar no freio, ela acionou o pedal do acelerador, sem entrar no carro, que estava em movimento.
— Como ela era uma mulher alta, ela pisou no pedal segurando uma mão no capô e outra na porta. Invés de pisar no freio, pisou no acelerador com a ré engatada. O carro arrastou ela com metade do corpo pra fora e ela foi prensada pela porta do carro na lateral do portão — explica.
O automóvel seguiu de ré, colidindo a traseira contra a lateral de um Peugeot 307 que estava estacionado na rua. De acordo com o namorado, Elizandra desmaiou no momento do acidente, mas recobrou os sentidos aos poucos e até conseguiu trocar algumas palavras com ele antes do socorro chegar.
— É o tipo de situação que ninguém aceita. Eu tinha certeza que ela não ia morrer. Ela trabalhava na área da saúde e era muito querida por todos. Já estão fazendo quatro meses e só agora eu estou conseguindo falar — conta.
Filha mais nova, melhor amiga e confidente
Faziam apenas quatro meses que Evandrea Cunn da Rosa, 49 anos, havia se mudado da casa dos pais, onde morou por mais de um ano com a irmã, Elizandra, quando aconteceu o acidente que tirou a vida da caçula. A higienista de saúde foi morar com Eliz após o falecimento do pai e da mãe, em setembro de 2021, em decorrência da covid-19.
— Vou lembrar dela como a minha filha mais nova, minha parceira. Depois que nossos pais morreram, eu fiquei morando com ela um ano e dois meses e a gente dividiu muita coisa ali. Pra mim ela era uma grande amiga, uma confidente, a gente sempre conversava muito. Ela tinha um lado mãezona, um coração grande e de vez em quando era até meio chata — lembra a irmã.
Evandrea conta que estava dentro do carro com o esposo e os filhos, se preparando para ir à festa da irmã do meio — que foi morar com Elizandra em janeiro, após sua saída da casa — quando foi informada pela aniversariante sobre o acidente. Segundo ela, a irmã a informou de que Eliz ainda estava consciente e falando, a caminho do hospital, para onde a família se dirigiu. Chegando lá, Evandrea recebeu uma ligação do namorado da irmã.
— Recebi uma mensagem dele (namorado) dizendo que ele tinha sido autuado e estaria preso. Fomos até a delegacia e dois policiais nos fizeram algumas perguntas sobre os dois. Foi nesse momento que o policial falou que ela estava morta. Não prestei depoimento e voltamos ao hospital — conta a irmã.
Diversas, inúmeras vezes, ela falou que o freio de mão era ruim e que ela precisava chamar ele para que soltasse, porque ela não conseguia
EVANDREA CUNN DA ROSA
irmã mais velha de Elizandra
Ela afirma que Eliz era “completamente apaixonada” pelo namorado, o que, algumas vezes, era até motivo de piada entre elas. Ela conta, também, que ele era atencioso com a irmã e querido por toda a família, inclusive pelo pai e mãe falecidos.
— Ele era da família. Foram 16 anos de convivência com ele. Na nossa família todo mundo gostava dele, sim, e ela mais ainda — reforça.
A irmã reitera que o problema com o freio de mão do veículo era uma reclamação recorrente de Eliz e que ela sempre dizia que precisava da ajuda do namorado para destravá-lo.
— Diversas, inúmeras vezes, ela falou que o freio de mão era ruim e que ela precisava chamar ele para que soltasse, porque ela não conseguia — lembra.
Demora no atendimento
O namorado de Eliz relatou que o Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (Samu) demorou cerca de 40 minutos para chegar ao endereço. O atraso teria sido motivado porque há duas ruas com Vitor Hugo no nome e em locais diferentes da cidade. Segundo ele, a ambulância foi até o endereço incorreto e teria aguardado, o que aumentou o tempo de espera.
Ele acredita que se o socorro tivesse chegado antes, ela poderia ter sobrevivido. Evandrea também comenta sobre a demora no atendimento do Samu.
— Acredito que se eles tivessem encontrado o endereço mais cedo, quem sabe ela não teria mais chances. Nestes casos, nós, que trabalhamos na área da saúde, sabemos que o tempo é uma coisa muito importante — sublinha a irmã.
Sobre este tema, a Polícia Civil diz que “o inquérito ainda está em andamento”, portanto, ainda não há “uma conclusão quanto a isso.” Procurada pela reportagem, a assessoria de comunicação da prefeitura de Gravataí informou que os “chamados do Samu são atendidos pela regulação em Porto Alegre. Eles é que têm o controle do horário dos chamados e tempo para o atendimento, pois possuem rastreador nos nossos veículos. O Município tem apenas registro local dos fatos.”
Conforme a assessoria de comunicação da Secretaria Estadual da Saúde (SES), a direção do Departamento de Regulação Estadual não tem “como falar sobre caso especifico, especialmente quando está sob inquérito policial" e que "somente por ordem judicial" poderia se "manifestar sobre os fatos.”