Uma mulher de 55 anos foi resgatada de uma casa onde viveu por mais de quatro décadas em situação análoga à escravidão no município de Campo Bom, no Vale do Sinos. Sem contrato de trabalho nem limitação de jornada, a mulher era obrigada a fazer faxina na casa de uma família, que a proibia de ter contato com outras pessoas. Impedida de estudar desde que chegou à residência, vivia em uma peça anexa à casa, tem deficiência intelectual e não recebia atendimento médico. De acordo com o Ministério Público do Trabalho (MPT-RS), apesar de o imóvel não ter grades, a mulher sofria ameaças e chantagens para permanecer no local.
Na quarta-feira (2), a trabalhadora foi retirada da casa e encaminhada a uma instituição, sob responsabilidade da Assistência Social do município de Campo Bom. O caso começou a ser investigado no final do ano passado, após denúncia anônima.
Na residência, vive um casal de idosos, ambos com mais de 70 anos. Além dos afazeres domésticos, a trabalhadora era obrigada a fazer faxina em um minimercado que fica ao lado da residência e pertence ao casal.
Conforme a Superintendência Regional do Trabalho, a mulher não tinha vínculo de emprego reconhecido e não recebia nenhuma quantia em dinheiro pelo trabalho prestado. Os documentos da trabalhadora ficavam retidos pela patroa.
Nos mais de 40 anos em que esteve na residência, não há indícios de que a mulher tenha sido cadastrada ou integrada à rede de assistência social, frequentado escola nem qualquer instituição para pessoas com deficiência, o que pode ter agravado a situação da mulher.
De acordo com Rafael Giguer, um dos auditores fiscais do grupo que acompanhou a ação, apesar de não terem grades que impedissem a trabalhadora de fugir do local, ela era mantida sob violência física e ameaças e não tinha recursos para se sustentar.
— A restrição de liberdade era física, psicológica e econômica. A patroa criava uma pressão psicológica de que o mundo lá fora seria muito mais perigoso e que ela deveria fazer de tudo para sempre se manter na casa. Pela deficiência intelectual e todo esse cenário, ela não tinha noção da situação a que era submetida. Também não era permitido que ela interagisse com vizinhos ou qualquer outra pessoa. Ela parece também ter sido instruída a dizer frases prontas, foi algo que chamou atenção. Falava de forma repetitiva e dissociada do que se perguntava — explica Giguer.
A trabalhadora também era impedida de falar com familiares. Segundo a apuração, cinco irmãos da mulher estão vivos, dois deles, moradores de Campo Bom. Um deles afirmou às equipes que, na última vez em que tentou contato com a mulher, há cerca de três meses, teria novamente sido impedido pela patroa. O pai da mulher, agora falecido, também teria tentado falar com a filha.
— Diziam para ela que todos os familiares já haviam falecido. Também ameaçavam afirmando que, se ela saísse dali, nunca mais poderia voltar. Outra ameaça constante é de que ela seria atropelada se saísse na rua, porque ela sofreu um atropelamento na infância e mantinha esse medo — complementa Giguer.
Os parentes devem ser contatados nos próximos dias.
Vizinhos dizem que tinham medo de denunciar
As equipes afirmam que vizinhos do casal foram ouvidos. Apesar de demonstrarem indignação, muitos deles teriam dito que tinham medo de denunciar o caso. O filho do casal, que costumava visitar os pais, também teria conhecimento da situação.
No começo da investigação, a patroa teria tentado ocultar informações, segundo as equipes. Ela teria dito que apenas o casal morava na casa. Depois, passou a afirmar que a trabalhadora fazia faxina como diarista. Com o avanço da apuração, teria dito que a mulher era tida como uma filha do casal e que não realizava trabalhos domésticos.
Conforme o MPT-RS, esse é o primeiro resgate de empregada doméstica realizado no Estado. Além da entidade, a operação foi realizada em conjunto com auditores fiscais do Trabalho da Superintendência Regional do Trabalho no Estado, Polícia Rodoviária Federal e a Secretaria de Assistência Social.
Trabalhadora tem sonho de ter uma casa
Segundo Giguer, apesar dos anos que passou sem poder fazer escolhas próprias, a trabalhadora relatou às equipes dois sonhos: de poder viver em uma casa e de se casar. A mulher também tem apreço especial por bonecas, e deu o próprio nome a uma delas, com que teve contato durante consultas com assistentes sociais.
Ela teve roubada essa possibilidade de viver, de conhecer pessoas, de ter relações de afeto
RAFAEL GIGUER
Auditor fiscal
— Acho interessante que ela tenha justo esses desejos, que eram tão negados a ela. Por mais que já tenham se passado alguns anos, ela tem direito de ter sua vida, construir relações, amizades. Certamente, esse agora é um novo começo para ela, mas um começo traumático. Ela teve roubada essa possibilidade de viver, de conhecer pessoas, de ter relações de afeto. Tudo isso foi privado a ela — observa Giguer.
Conforme a investigação, quando criança, a vítima era cuidada por uma tia. A família, que tinha origem humilde, teria concordado com a proposta de que a menina fosse acolhida e passasse a morar com o casal em troca de um rancho de comida. À época, ela tinha entre 10 e 15 anos.
Verbas rescisórias ultrapassam R$ 93 mil
Uma audiência deve ser realizada na próxima semana com a empregadora para negociar o pagamento dos valores devidos, informou o MPT-RS. Conforme os auditores fiscais, as verbas rescisórias da empregada estão calculadas em R$ 93.815,53, referentes aos últimos cinco anos de trabalho. Uma guia do seguro-desemprego do trabalhador resgatado foi emitida, o que permite o recebimento de três parcelas de um salário mínimo (R$ 1.212).
O MPT-RS afirmou que também encaminhou o caso para o Ministério Público do Estado, para que seja aberto processo de curatela para a resgatada. A Defensoria Pública da União também foi acionada para que seja pleiteado um benefício previdenciário em nome dela. Até o momento, não há processo criminal aberto contra o casal.