A Linha 40, uma das regiões mais valorizadas e antigas do interior de Caxias, está paralisada. Há cerca de um mês, a prefeitura iniciou um processo de embargo de obras no bairro, onde atualmente estão assentadas cerca de 3 mil residências. Por isso, quem fizer intervenções nos terrenos ou dar continuidade de reformas está sujeito a multa, cujo valor pode dobrar em caso de reincidência. O motivo seria a falta de regularização de oito condomínios que abrigam mais de 600 moradores.
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Embora a justificativa pareça simples, a medida representa mais um episódio de uma conturbada e polêmica relação entre o poder público e a comunidade, cujos desacordos iniciaram há cerca de 10 anos. Na época, passaram a vigorar alterações nos regramentos para análises de projetos ambientais e de parcelamento do solo, após a atualização do Plano Diretor Municipal, que mudou a Linha 40 de zona rural para urbana. Posteriormente, foi estabelecida a contrapartida de doação de 15% da área de cada condomínio - com mais de 10 mil metros quadrados - ao poder público.
Ao longo dos últimos anos, pelo menos três modificações e decretos tornaram mais rigorosas a liberação de regularizações. No entanto, para os moradores, o problema é a burocracia. Eles alegam que, no decorrer desse tempo, todas as documentações requisitadas foram encaminhadas em pelo menos três ocasiões. Porém, em nenhuma delas, a administração deu andamento aos processos de regularização, tornando as áreas, teoricamente, inadequadas.
– Investimos em estudos técnicos de todos os tipos. Encaminhamos tudo que foi pedido. Mas quando cobramos a aprovação, a resposta é sempre a mesma: a documentação está sob análise – reclama o presidente da Associação de Moradores da Linha 40, Antonio Jorge Pereira.
Segundo ele, muitos dos estudos perdem validade após um período de dois anos. Assim, há necessidade constante de refazer os levantamentos e encaminhar novamente à prefeitura. Ele diz que recentemente contratou técnicos para realizar mais estudos para um futuro encaminhamento de nova documentação.Todo o trabalho deve custar mais de R$ 60 mil.
– É complicado ter que repetir gastos com a mesma coisa para obtermos as mesmas conclusões técnicas e não haver esse retorno da prefeitura. Não nos importaríamos em pagar, contanto que a situação fosse resolvida, mas desse jeito, a comunidade vai falir e não vamos legalizar nossas áreas – complementa.
"Ninguém compra mais nada"
O Pioneiro circulou pelos condomínios embargados e comprovou a interrupção de obras em diversos locais. De acordo com os moradores, a medida da prefeitura emperrou um crescimento que ocorre há anos na Linha 40.
– Muita gente quer vir pra cá porque é um ambiente tranquilo, fora da área urbana, mas mesmo assim, próximo o suficiente da cidade – ressalta o empresário, Lenir Fábio Adami.
Além de vivenciar dificuldades para obter a regularização da sua propriedade, Adami se diz ainda mais prejudicado por ter uma loja de materiais de construção no bairro.
– Ninguém compra mais nada. Os fiscais estão por todo o lado. Se saímos com caminhão carregado de materiais pode ter certeza que logo nos abordam – lamenta.
A principal reclamação dos moradores é com relação à suposta falta de consideração da prefeitura com a boa vontade da comunidade em seguir todas as regras e normas previstas em leis.
– O curioso é que para alguns eles alegam que não têm ciência de quem é o proprietário da terra, mas a conta do IPTU chega certinha nos endereços com o nome dessas pessoas _ acrescenta.
O presidente da Amob, Antonio Jorge Pereira, ressalta que não há nenhuma resistência da comunidade em providenciar os serviços básicos que são exigidos, o que, inclusive, garante já ser feito:
– Tudo que dispomos em termos de estrutura foi realizado por nós. Até mesmo nossa água é mais natural e saudável. Conseguimos conquistar aquilo que todo mundo sonha em ter, mas não estão nos deixando viver tranquilamente.
Morador há 50 anos da Linha 40, o empresário, Vanderlei Zanini, reforça as argumentações.
– Cada condomínio preserva mais do que o mínimo exigido de área verde. É quase uma regra interna resguardarmos 20% de mata e fica bem claro se o bairro for visto do alto. Mas parece que a prefeitura impõe aleatoriamente essas cobranças e não analisa as documentações que mandamos.
"Só queria investir naquilo que é meu"
Muitas das casas na Linha 40 não são ocupadas no dia a dia e boa parte das construções foram planejadas como chácaras. Porém, o decreto de embargo comprometeu também a vida de famílias que dependem do andamento das obras para a conclusão de moradias, caso da vendedora, Rosamaria Hoffmann.
Ela se diz apreensiva desde que foi notificada pela prefeitura no final de junho.
– Vendi recentemente meu apartamento na cidade para investir na construção de uma casa em um lote que adquiri na Linha 40 há cerca de sete anos. Tudo estava programado para nos mudarmos em março do ano que vem. Agora com esse embargo, não sei mais o que fazer.
Além de não poder prosseguir com a obra, ela afirma que recebeu ordem de despejo do comprador do apartamento.
– Preciso desocupar o imóvel até março. Se isso não tiver se resolvido simplesmente vou ficar sem ter onde morar. Sou assalariada, investi mais de R$ 200 mil naquela obra e não tenho mais o que fazer – desabafa.
Segundo ela, um recurso já foi protocolado na prefeitura, porém, ainda não houve nenhum retorno.
– É muito complicado e tá tudo muito confuso. Já tentei esclarecer com o município, mas ninguém me recebe. Só queria ter direito de investir naquilo que adquiri e é meu por direito – complementa.
De acordo com um condômino da área onde Rosamaria adquiriu o lote, Romeu Antonio Susin, toda a documentação requerida para regularização do condomínio foi entregue ainda em 2015.
– Já entreguei todos os estudos e documentos pedidos. Não estou podendo vender mais nenhuma terra e nem os moradores podem mexer em nada das propriedades deles mesmos. Não dá para entender, eles solicitam coisas impossíveis, adquiri minha área há 19 anos, antes mesmo dessa lei vigorar.
Mesmo produtores rurais, que residem há décadas na região, estariam sendo impedidos de realizar modificações nos terrenos.
ENTREVISTA / SECRETÁRIA DE URBANISMO
"Contrato de compra e venda não garante regularização"
Os impasses envolvendo a regularização fundiária não são exclusivos da Linha 40. O drama também é vivenciado em outras localidades de Caxias como Monte Bérico, Altos de Galópolis e Fazenda Souza. Sobre a Linha 40, a titular da Secretaria Municipal do Urbanismo, Mirangela Rossi, afirma que o maior problema é o desconhecimento de muitos compradores sobre a real situação de cada terreno.
Confira trechos da entrevista:
Pioneiro: Moradores alegam que há descaso do poder público. Mas quais são os entraves que afetam a região da Linha 40?
Mirangela Rossi: É preciso haver o entendimento de que contratos de compra e venda não garantem regularização. Mesmo que você tenha a documentação, é necessário que o proprietário da terra ou do condomínio tenha tudo consolidado. O morador alega que demora para a prefeitura responder, mas ele não cobra de quem deveria, que seriam os loteadores. Por exemplo, ingressam projetos na secretaria (do Urbanismo) sobre os quais fazemos três apontamentos. Após um tempo, os proprietários apresentam a correção apenas de um dos itens. O que podemos fazer? Não há como ter avanço um projeto desses.
A decisão do embargo partiu da prefeitura?
Foi a partir de apontamento do Ministério Público, que questionou o município sobre os tipos de medidas administrativas que estavam sendo tomadas sobre as áreas e lotes irregulares. Então, decidimos fazer vistoria porque até então só fiscalizávamos áreas ocupadas por pessoas de baixa renda. Só que há muitos empreendimentos irregulares em regiões mais abastadas, como a Linha 40.
Os moradores também alegam que toda a documentação encaminhada é baseada em estudos técnicos e que nada justificaria impedimentos do município.
Cada caso tem um problema específico. Temos situações (na Linha 40) que há lotes em áreas de preservação permanente, perto de nascentes. São terrenos praticamente impossibilitados de receber construção mas que foram vendidos. Fazer obra só é possível quando se tem licença de construção que, por sua vez, precisa de projetos aprovados e esses devem conter responsável técnico e diversos tipos de laudos. Também consideramos a questão da consolidação, se os empreendimentos foram construídos com base em regras anteriores e não há viabilidade de adaptação, eles normalmente são aprovados a não ser que envolvam riscos.
Também é insinuado que há conveniência da prefeitura em reconhecer as propriedades. Os moradores dizem que muitas vezes há conhecimento do poder público somente quando há interesse em tributar as áreas. Há, de fato, esse conflito?
IPTU, água, energia elétrica e coleta de lixo não envolvem propriedade. Só existe propriedade quando há escritura, titulação e registro e isso independe dos tributos. Se o município não cobrar é enquadrado por renúncia fiscal.
Sobre a morosidade do trâmite, há possibilidade de o processo ser agilizado?
Estamos em constante aprimoramento dos setores de análise visando tornar mais rápido o procedimento. Há uma força-tarefa dentro da secretaria responsável por isso. Mas nem tudo ocorre na agilidade que gostaríamos, porque também nem tudo depende só de nós.
MP desconhece recomendação
Consultado pelo Pioneiro, o promotor do Ministério Público, Adrio Gelatti, disse não haver recomendação do órgão sobre a questão dos embargos, diferente do que alega a secretária do Urbanismo. Porém, ele reconhece a validade da medida, assim como o problema vivenciado na Linha 40:
– Não houve recomendação do MP, acredito se tratar de trabalho rotineiro de fiscalização da prefeitura. Mas a região já é um problema bastante conhecido e, neste caso, nem sempre a culpa é do poder público. Precisa haver também boa vontade dos proprietários.