O embate de pais das vítimas da boate Kiss processados por promotores de Justiça do caso terá novo capítulo nesta segunda-feira, no Tribunal de Justiça do Estado (TJ), em Porto Alegre. Depois de 35 dias, o julgamento do recurso da defesa de Flávio José Silva, que perdeu a filha, Andrielle, 22 anos, na casa noturna em 27 de janeiro de 2013, será retomado a partir das 14h. Ele é processado por calúnia pelo promotor Ricardo Lozza, de Santa Maria.
Flávio, vice-presidente da Associação de Familiares de Vítimas e Sobreviventes da Tragédia de Santa Maria (AVTSM), e Sérgio Silva, presidente da entidade, são réus porque anexaram cartazes por Santa Maria com o rosto de Lozza e a inscrição: "O MP (Ministério Público) e seus promotores também sabiam que a boate estava funcionando de forma irregular". Antes da tragédia, que matou 242 pessoas, o promotor descobriu, em inquérito sobre poluição sonora na Kiss, que faltava alvará e propôs termo de ajustamento. Lozza entendeu que houve crime contra sua honra no protesto dos pais.
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No processo, Flávio requereu a chamada "exceção da verdade". Defendido pelo advogado Pedro Barcellos Jr, tenta provar que não caluniou o promotor e que falou a verdade ao dizer que o MP sabia sobre o funcionamento irregular da Kiss. A audiência de 22 de maio no TJ foi interrompida porque um dos desembargadores, Rui Portanova, pediu vista. O placar é praticamente irreversível – 20 a 0 a favor do promotor.
O desembargador Sylvio Baptista Neto votou pela continuidade da ação, seguido por outros 19 colegas. Faltam apenas os pronunciamentos dos desembargadores Portanova e Gelson Rolim Stocker. Mesmo já tendo votado, os demais integrantes da Corte podem rever suas decisões, o que é pouco provável.
O julgamento será retomado depois de uma semana em que dois novos fatos recolocaram a tragédia da Kiss no noticiário nacional. No domingo do último dia 18, o Fantástico, da TV Globo, revelou áudio em que o promotor Joel Dutra, outro integrante do MP que se diz vítima de calúnia e difamação, menciona ter "certeza" sobre haver "mutretas" na prefeitura de Santa Maria.
A gravação foi feita por um grupo de pais, em conversa na sede do MP de Santa Maria em junho de 2013, cinco meses após a tragédia. Ao confirmar o diálogo em entrevista ao Timeline, da Rádio Gaúcha, Dutra justificou a decisão de processar os pais:
– Acho que toda e qualquer dor, por mais intensa que seja, tem de ter seu limite.
Após a exibição no Fantástico, a campanha "Somos Todos Pais Kiss" ganhou força. A fanpage ganhou milhares de curtidas no Facebook e a hashtag homônima passou a ser compartilha no Instagram e no Twitter entre músicos, atores, pesquisadores e políticos. Astros globais, como o gaúcho Rafael Cardoso, Edson Celulari e Dira Paes, gravaram vídeos de apoio aos pais.
A defesa de Flávio não acredita que a repercussão do caso possa influenciar os desembargadores e já pensa, em caso de derrota no TJ, em recorrer ao Superior Tribunal de Justiça (STJ), em Brasília.
– Espero que os votos dos desembargadores sejam favoráveis aos pais. Por mais que percamos de 20 a dois, teremos mais força para ir a Brasília – avalia Barcellos.
Na defesa do promotor Lozza, o advogado José Antônio Boschi avalia que os dois votos faltantes dos desembargadores seguirão a decisão tomada pelos colegas:
– Minha expectativa é de que haja votação uniforme, na linha dos anteriores. Mas é claro que eles têm toda a liberdade de votar contra, e os que já votaram podem voltar atrás. Isso é possível tecnicamente, mas não acredito em reversão do julgamento.
Questionado se os promotores estariam sensíveis aos apelos para retirarem as acusações, Barcellos afirma:
– Eles nunca foram insensíveis a qualquer tipo de conversa, de entendimento. O que não pode é haver um acordo do tipo "vocês admitem que estavam errados, e a gente termina o processo". Isso não é acordo. Nunca pensei em termos objetivos para um acerto. Mas, se houvesse da parte de todos a intenção de pôr fim a tudo isso, acredito que haveria saída honrosa. O que não pode haver é tentativa de acordo mediante declaração unilateral de capitulação.
Procurado por ZH, o promotor Lozza foi cauteloso nas palavras, mas não descartou a hipótese de acerto:
– Não é uma coisa totalmente descartada. É um assunto a ser refletido. O doutor Joel (Dutra) nunca fechou essa porta. Acho prudente que todos aguardemos o encaminhamento da segunda-feira.
Se o TJ considerar que Flávio não mentiu, o processo por calúnia deixa de ter sentido na 4ª Vara Criminal de Santa Maria. Em caso contrário, a ação seguirá normalmente. O pai se mostra resignado com o resultado do julgamento, que já considera perdido:
– A gente sabe que não vai ser revertido esse placar. Isso nos deixa tristes, porque são desembargadores pagos com nosso suor.
Na hora em que têm de ser justos, dar resposta para a sociedade, fazem esse papelão. Não me preocupa ser condenado ou não. Minha preocupação é com a verdade sobre a tragédia. Não quero e nem preciso que algum deles vote sentindo pena de mim.
Cerca de 30 pais devem acompanhar o julgamento no TJ hoje. Além de Flávio e Sérgio, outros dois pais de vítimas das Kiss, Paulo Carvalho e Irá Beuren, são processados por calúnia e difamação pelos promotores Joel Dutra e Maurício Trevisan, além do promotor aposentado João Marcos Adede y Castro e do filho dele, o advogado Ricardo Luís Schultz Adede y Castro.
Caso 1
O presidente da Associação de Familiares de Vítimas e Sobreviventes da Tragédia de Santa Maria (AVTSM), Sérgio Silva, e seu vice, Flávio Silva, afixaram cartazes em abril de 2015 com foto do promotor Ricardo Lozza seguido da texto: "O MP e seus promotores também sabiam que a boate estava funcionando de forma irregular". Antes do incêndio, Lozza conduziu inquérito sobre poluição sonora na Kiss. Descobriu que faltava alvará e propôs termo de ajustamento. Sérgio, pai de Augusto, 20 anos, e Flávio, pai de Andrielle, 22 anos, são processados por calúnia.
Como está a situação: a apelação dos pais começou a ser julgada em 22 de maio no Tribunal de Justiça, em Porto Alegre. Em seus votos, 20 desembargadores rejeitaram o recurso. O desembargador Rui Portanova pediu vista, e o julgamento foi interrompido. A nova audiência será hoje, quando Portanova e o colega Gelson Rolim Stocker devem declarar seus votos.
Caso 2
Irá Beuren, conhecida como Marta e mãe de Sílvio, 31 anos, morto na tragédia, publicou no dia 6 de maio de 2015 artigo no jornal Diário de Santa Maria no qual informou que Ricardo Luís Schultz Adede y Castro, filho do promotor aposentado João Marcos Adede y Castro, virou advogado da Kiss depois da aposentadoria do pai, que atuava na promotoria quando a casa noturna começou a ser investigada pelo MP por poluição sonora. Pai e filho entraram com ação indenizatória contra Irá por danos morais.
Como está a situação: o julgamento está nas mãos do juiz Carlos Alberto Ely Fontela, da 3ª Vara Cível de Santa Maria.
Caso 3
Pai de Rafael, 32 anos, morto na Kiss, Paulo Carvalho, diretor jurídico da AVTSM, publicou dois artigos no jornal Diário de Santa Maria e uma publicação no Facebook, em março e junho de 2015, nos quais acusa os promotores de "corporativismo" e "protecionismo". Também alega que houve "fraqueza" no processo sobre as mortes no incêndio. Os promotores Joel Dutra e Mauricio Trevisan, que trabalharam na investigação, o processam por calúnia e difamação.
Como está a situação: a ação aguarda sentença do juiz Leandro Augusto Sassi, da 2ª Vara Criminal de Santa Maria.