Nas últimas semanas, acompanhamos os desdobramentos de uma denúncia de assédio sexual contra o ator José Mayer. A estrondosa repercussão resultou em uma retratação pública do ator, bem como em seu afastamento da novela da qual participaria. Mas também deu lugar a uma série de denúncias de outras mulheres que enfrentaram situações parecidas, no meio artístico e fora dele.
Casos como esses têm produzido tensões e embates no âmbito público e evidenciam a potência, construtiva e destrutiva, das redes sociais nos processos de transformação que vivemos. Há sempre o perigo de linchamentos morais sem comprovação de fatos, cujos efeitos nefastos permanecem mesmo após desmentidos e confirmações de inocência. Este, porém, não foi o caso: não apenas houve testemunhas do assédio, como o próprio ator acabou confessando, após a pressão, seus atos.
O aspecto que mais me interessa aqui é a suspeita que, com frequência, recai sobre denúncias que surgem na esteira. São comuns questionamentos sobre o porquê de virem à tona apenas nesse momento, não raro com acusações de histeria coletiva ou oportunismo. Não que isso não possa ocorrer em casos isolados; mas a grande maioria das denúncias surge porque muitos episódios, até então, não haviam sido reconhecidos como experiências traumáticas.
Muitos eventos traumáticos não são percebidos imediatamente como tais. Com frequência, uma situação de abuso ou outro tipo de violência só adquire seu caráter traumático tempos depois, quando algo ressignifica aquele acontecimento.
Não é raro que traumas permaneçam esquecidos ou guardados por culpa, vergonha, ou por não serem reconhecidos socialmente como violência. No caso José Mayer, isso é evidente nas denúncias de atrizes veteranas: para muitas, o famigerado "teste do sofá" fizera parte do ofício, e investidas sexuais dos colegas tinham cunho de "brincadeira".
Para que o caráter traumático de um acontecimento seja reconhecido, são necessárias palavras ou fatos que lhe atribuam esse caráter. Um exemplo simples, mas contundente, é a escravidão: na época, não se reconhecia seu caráter violento – o que hoje dificilmente seria negado. Uma violência sem reconhecimento corre o risco de ficar silenciada, vivida como algo individual, desconectado do âmbito social. Seu silenciamento não é sem efeitos, e tem um custo – tanto individual quanto coletivo. No nível individual, produz sintomas e sofrimento psíquico, podendo levar até a morte; no âmbito social, perpetua violências que, não reconhecidas como tais, se repetem de forma naturalizada.
Muito tem se falado em "disputa de narrativas" a respeito do feminismo e de outros movimentos que denunciam violências sofridas por indivíduos e grupos sociais. Em outras palavras, trata-se de uma batalha por qual significado prevalecerá no discurso social – neste caso, se é "brincadeira" ou "assédio". O que essa disputa evidencia é que não se trata de meras palavras: narrativas atingem diretamente corpos, memórias, relações – vidas. Esquecer e silenciar podem parecer saídas mais cômodas, como no conselho frequente de "deixar o passado para trás". Mas violências silenciadas costumam ser bem barulhentas – e, às vezes, violentas.
Paulo Gleich escreve mensalmente para o Caderno DOC.