Os gregos chamavam charis (pronuncia-se o ch com o som da letra J em espanhol, como em Javier) a um favor, dádiva, deleite, prazer: graça. Trata-se de uma aura estética sagrada, geralmente coreográfica (pois os gregos dançavam sempre que podiam); de Xenófanes (sécs. VI-V a.C.): "No centro está um altar todo recoberto de flores, canto e graça envolvem a casa".
No pensamento religioso, estético e social, que impregna as artes, as três graças dançam nuas, em roda, e acusam a presença de Afrodite; são também um dos principais fios condutores da memória cultural pagã, da Grécia a Roma, desta ao Renascimento, deste aos neoclassicismos da modernidade e, por fim, ao olhar contemporâneo.
No pensamento grego, a ideia de graça supõe presença, oferenda, reconhecimento e, acima de tudo, um grau de beleza cordial, celebrada em Epicuro como amizade (philía), com sentido ético e político: o valor elevado que nos une.
Há, pois, uma dimensão social e política da graça, que o helenista alemão Christian Meier examinou no livro A Política e a Graça (1984), um belo ensaio de antropologia política. Diz ali, mostrando como a educação produz a graça e como ela se realiza nos debates da pólis democrática: "Os ouvintes não são convencidos apenas por argumentos, mas por qualquer coisa que se acrescenta a estes: a maneira de formulá-los, de os exprimir, o modo de se apresentar em público; a graça, em que se unem espírito e corpo, o natural e a reflexão, a reserva e a leveza".
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Ele refere uma esfera pública em que há lugar para a beleza, no que se evoca o elogio de Heródoto, no diálogo dos três persas (Histórias, III, 80), que dá origem à ciência política: "Isonomia, a mais doce das palavras". Neste caso, a democracia é descrita como um cenário "doce" (hedús), isto é, prazeroso. A vida em uma cidade democrática supõe alto grau de beleza e prazer, pela ausência de violência e pelo cultivo de virtudes que produzem o congraçamento.
Tucídides, entusiasta de uma democracia esclarecida e harmônica, nos dá na oração fúnebre de Péricles várias imagens da graça como base da vida de Atenas, seja valorizando o papel das artes no alívio do espírito, seja mostrando como são os comportamentos modernos em uma pólis tolerante: "Conduzimo-nos liberalmente em nossa vida pública, e não observamos com curiosidade suspicaz a vida privada de nossos concidadãos, pois não nos ressentimos com nosso vizinho se ele age como lhe apraz, nem o olhamos com ares de reprovação que, embora inócuos, lhe causariam desgosto" (II, 37). Esta citação lembra a famosa fala do doutor Drauzio Varella: se o sujeito se ofende porque o vizinho é homossexual, então este sujeito deve se tratar, pois está doente.
Logo, um forte sintoma da falta de democracia é a rudeza na vida pública, a violência, o enfeiamento da cidade, do estado, da nação. Para nós, ora governados por escroques da pior qualidade e por violadores, pode parecer imperativa a feiura de um presidente machista, agressor de direitos, o despudor de sua quadrilha, ou a desgraça de um governador que fere a sociedade extinguindo patrimônio artístico, científico, técnico e cultural (as fundações).
É mais que feio, horrível, a incapacidade destes governantes de agir como gente civilizada, e dialogar com pertinência e, por que não, elegância: a graça da democracia. Quando temos argumentos e eles convergem para o bem comum, há muitas formas de apresentá-los e torná-los convicção coletiva e prática cooperativa. Será bonito o dia em que vivermos a graça de uma verdadeira democracia.
* Francisco Marshall escreve mensalmente no Caderno DOC.