Nada representa melhor a vindima na Serra gaúcha do que colher a uva debaixo do parreiral e pisá-la como faziam os antigos imigrantes italianos e seus descendentes. Oferecida por algumas vinícolas entre os meses de janeiro e março, a atividade faz a festa dos milhares de turistas que visitam a região todos os anos nessa época e é um dos pontos altos do roteiro Fascínios da Vindima, no qual os participantes têm a oportunidade de conhecer de perto as etapas da elaboração de vinhos e espumantes e saborear delícias da farta gastronomia regional.
Leia mais
Nivaldo Pereira: águas piscianas
Pedro Guerra: gostar do que ninguém gosta
Aprenda a fazer alguns dos pratos servidos no Fascínio da Vindima, em Bento Gonçalves
Operado desde 2013 pela Giordani Turismo, agência de receptivo em Bento Gonçalves, o roteiro de aproximadamente oito horas de duração tem sua primeira parada a Vinícola Cainelli, uma pequena empresa familiar localizada às margens da BR-470, no distrito de Tuiuty, no Vale do Rio das Antas. Suas origens remontam a 1875, quando Gaspparo Cainelli veio da Itália em busca de melhores condições de vida. Por aqui, teve 11 filhos, e um deles, Ricardo, iniciou o cultivo de uvas para a produção de vinhos em uma cantina instalada no porão da moradia. O trabalho seguiu até por volta de 1960, quando a vinícola encerrou suas atividades em razão de dificuldades financeiras e da falta de mão de obra, uma vez que todos os 11 irmãos já estavam casados e com filhos.
Em 2001, Roberto Antônio Cainelli, neto de Ricardo, resolveu retomar o sonho do bisavô imigrante e ressuscitou a vinícola a partir do replantio de vinhedos. Atualmente, a empresa está sob o comando do enólogo Roberto Cainelli Júnior, da quinta geração da família, que coordena a produção anual de aproximadamente 12 mil garrafas de vinhos finos e 50 mil de espumantes além dos vinhos de mesa.
De volta ao mercado em 2011, a Cainelli passou a receber turistas e hoje é um dos destinos favoritos para quem quer viver a experiência de esmagar as uvas com os pés. Antes de partirem para o "trabalho", os visitantes ouvem uma breve explicação da história da empresa e visitam um museu instalado em uma belíssima construção de 1929 onde estão distribuídos objetos originais da família e peças doadas ao acervo por moradores da comunidade.
É o momento da colheita. Uma breve caminhada leva até o parreiral, onde uma placa de madeira rústica e pintada à mão com tinta branca avisa: "Nesse vinhedo não temos wi-fi, mas você encontrará uma conexão muito melhor." De chapéu de palha, os vindimeiros devem encher cestos de vime com a fruta que em seguida será pisoteada. Enquanto "trabalham", eis que surgem, de trator e vestidos a caráter, os animadores da festa. Puxados pela gaita de Juraci de Mozzi Andreis e pelo violão de Samuel Pedrotti, os cantores entoam canções como Bella Polenta, Mérica Mérica, Moreninha Linda, As Mocinhas da Cidade e Querência Amada.
Aos 72 anos, Jora, como ela é conhecida, orgulha-se em proporcionar aos turistas uma experiência que, de certa forma, homenageia o trabalho de seus antepassados.
– É bastante gratificante. No passado era assim: chamavam os vizinhos para ajudar na colheita e o trabalho era mais rápido. A música ajudava o tempo passar mais depressa e a não sentir tanto o cansaço – lembra ela, que aprendeu a tocar o instrumento observando o pai, um tio e o avô.
– Morávamos em uma casa com 10 pessoas. Não tinha TV, então a gente se reunir depois da janta para cantar – conta.
Como recompensa pela colheita, uma mesa com quitutes como pão, salame, queijo, copa, bolo e polenta brustolada (na chapa) praticamente se materializa sob o parreiral. Com um bom vinho, a refeição, conhecida por merendim, cai perfeitamente para o momento. De carretão, o grupo retorna à vinícola, onde as uvas colhidas são despejadas na mastela (recipiente de madeira) para serem esmagadas.
Nessa altura, tudo é festa. Animados pelos cantores e por Nei Tomasi, 57, um típico gringo buona gente, as duplas posicionam-se no recipiente de madeira e realizam o "ritual", que por ora assemelha-se a passos de dança em meio ao líquido doce e viscoso que se forma.
Uma celebração digna para coroar o trabalho de quem trabalhou arduamente para transformar a Serra em referência na vitivinicultura nacional.
Evolução
O Fascínios da Vindima é ótima oportunidade para se ter um panorama geral da vitivinicultura brasileira. Da pequena Cainelli, o tour segue para a gigante Salton, também em Tuiuty, onde durante duas horas horas instalações industriais, passando pelo recebimento das uvas até o moderno setor de engarrafamento. O pacote também contempla um delicioso curso rápido de harmonização de vinhos e espumantes com queijos e chocolates. Tem jeito melhor de aprender do que na prática?
Completando 107 anos em 2017, a empresa está instalada desde 2004 em um imponente prédio com arquitetura em estilo de Villa Italiana baseada nos princípios do arquiteto Palladio (1508-1580). O projeto arquitetônico, que conta inclusive com um relógio solar na fachada principal, foi concebido pelo arquiteto Júlio Posenato.
Aconchego
Localizada no distrito de Faria Lemos, na Rota das Cantinas Históricas, a Cristofoli Vinhos de Família é a última parada do passeio enogastronômico. Recebidos pela enóloga Bruna Cristofoli, que administra a empresa com o irmão, Lorenzo, também enólogo, e pela prima Letícia, os turistas são conduzidos por uma breve visita à vinícola. Em meio aos tanques de fermentação, é apresentado o "vinho doce", que, apesar do nome, não é um vinho propriamente dito:
– É apenas o nome que damos aqui na Serra para o mosto (suco) da uva no início da fermentação, com menos de 1% de teor alcoólico e com um pouco de gás carbônico, o que confere uma sensação refrescante na boca. É consumido fresco, sem nenhum conservante, apenas durante a vindima.
Bruna explica que em alguns países de tradição vitícola, como a Alemanha, a bebida pode ser comprada em copo, nas feiras de produtores de cada cidade, semelhante ao nosso caldo de cana:
– Como é uma bebida de consumo sazonal, e regional, oferecemos às pessoas a oportunidade de bebê-la antes do almoço.
E por falar em almoço, o roteiro termina com um saboroso banquete preparado pela mãe de Bruna, Maria de Lourdes, e pela tia, Roseli, e servido por Lorenzo e Letícia. O cardápio inclui entrada com queijos, pães e focaccia, salada de folhas variadas, bígoli (espaguete) com molho de tomates confit, lombo suíno recheado com fortaia (omelete), batatas assadas e geleia de abacaxi com pimenta. De sobremesa, sagu de moscatel com morangos.
– Procuramos usar o máximo de ingredientes locais com o saber fazer da família e com a cara da gastronomia da nossa região – afirma Bruna.
*O repórter viajou a convite da Secretaria Municipal de Turismo de Bento Gonçalves.