Um argumento antigo usado pela prefeitura de Santa Maria em ações de indenização causou indignação ao ser revelado por um advogado que representa familiares de vítimas do incêndio da boate Kiss. Na gestão do então prefeito Cezar Schirmer (PMDB), atual secretário da Segurança Pública, a procuradoria do município sustentava em contestações que eventual estado de embriaguez dos frequentadores pode ter colaborado para as mortes dentro da Kiss. A questão, porém, está ultrapassada, já que o prefeito Jorge Pozzobom (PSDB) adotou nova linha para tratar do assunto.
– Não sustentamos essa tese, não aceitamos. Nossa palavra em relação às famílias é acolhimento, estamos reconstruindo essa relação. E o governo não vai se omitir, decisão transitada em julgado será cumprida – afirma Pozzobom.
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A polêmica envolvendo os argumentos da prefeitura veio à tona semana passada, quando o advogado Luiz Fernando Scherer Smaniotto publicou trecho de uma contestação do município em sua página do Facebook.
O documento é de junho de 2016, e não é exclusivo de uma única ação. Segundo a atual procuradora-geral de Santa Maria, Rossana Boeira, a gestão anterior da Procuradoria-Geral do Município (PGM) usou, entre outros argumentos, a tese de que a vítima embriagada pode ter colaborado com o resultado da morte. Isso foi citado em todas as contestações das ações de indenização que ingressaram contra o município desde a tragédia. São dezenas.
– Não é novo. Vinha sendo usado nas ações há anos, era uma orientação institucional da PGM na gestão anterior. Quando assumi, optamos por mudar essa defesa (o argumento da embriaguez) porque, além de não ter resultado perante a Justiça, é um argumento com o qual a atual gestão não concorda – diz Rossana.
Segundo a procuradora-geral, dezenas de ações que continham esse argumento foram vencidas pela prefeitura na Justiça de primeira instância. Depois, o Tribunal de Justiça (TJ) reverteu as decisões, dando ganho de causa às famílias. A tese da embriaguez, no entanto, não teria tido efeito nos resultados.
– O argumento da embriaguez sequer foi discutido nas sentenças, não teve valor algum. As decisões a favor da prefeitura foram com base na quebra de nexo causal, ou seja, a Justiça entendeu que a prefeitura não tinha responsabilidade, uma vez que o fato que gerou o incêndio foi o uso de fogos de artifício pela banda. Depois, o TJ teve entendimento diferente – explica Rossana.
A prefeitura de Santa Maria se diz surpresa pelo assunto ter sido trazido à tona neste momento e também reclama do fato de a procuradora que assinou essa contestação específica estar sendo alvo de ataques e críticas.
– O argumento não era dela. Era institucional, uma decisão da gestão da época. Tanto que agora, em fevereiro, já tem recursos assinados por ela sem esse argumento – pondera a procuradora-geral.
O advogado Smaniotto, que tem em torno de 40 ações de indenização contra a prefeitura, garante que só agora teve conhecimento do argumento usado pela gestão anterior da PGM de Santa Maria:
– A contestação é de junho, mas só chegou agora para que eu faça a réplica. Os pais começaram a falar, a nos procurar. Se a prefeitura não vai mais usar em seus recursos, ótimo. Mas o dano às vítimas, a ilação de que morreram porque estavam bêbadas, está feito. Agora, temos de ver como a associação (de familiares) vai querer agir.
Zero Hora contatou a assessoria do ex-prefeito Schirmer, que informou que nunca houve orientação dele em relação a argumentos a serem usados pela PGM nas ações dos familiares das vítimas da tragédia na Kiss.