Por:
Gilse Elisa Rodrigues: antropóloga, professora da Universidade Federal do Amazonas e Doutoranda em Ciências Sociais na PUCRS
Rodrigo Ghiringhelli de Azevedo: sociólogo, coordenador do PPG em Ciências Sociais da PUCRS e membro do Instituto Nacional de Estudos Comparados em Administração Institucional de Conflitos (INCT-Ineac)
A realidade do sistema prisional brasileiro já é de longa data um problema complexo e aparentemente sem solução. O aumento significativo da população carcerária e a intensificação da "guerra às drogas" nas últimas duas décadas sinalizam a falência de um modelo de intervenção estatal que, longe de apontar soluções, tende ao reforço das facções criminais que administram o mercado ilegal, dominam o ambiente carcerário, cooptam presos para suas fileiras e elevam as estatísticas da violência letal em vários Estados brasileiros.
A percepção de que o encarceramento em massa tem produzido efeitos colaterais, pelo fortalecimento das facções e a perda do controle do Estado sobre o ambiente carcerário, parece óbvia. Talvez por isso o atual ministro da Justiça defenda a necessidade de mais armas e menos pesquisas, tendo sido ele um dos atores chave da ampliação do sistema penitenciário paulista, que trouxe como resultado a consolidação da mais importante organização criminosa hoje no país, o Primeiro Comando da Capital (PCC).
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A chacina ocorrida em Manaus no dia 2 de janeiro, com a morte de 56 presos, acompanhada em seguida de nova chacina em Roraima (mais 31 presos mortos), e na semana seguinte no Rio Grande do Norte (mais 26 presos mortos), sinaliza não só o esgotamento das atuais políticas de segurança, como também da reiterada tentativa de administração emergencial do problema.
As pesquisas que desenvolvemos desde 2011 no interior do Amazonas, mais especificamente na tríplice fronteira Brasil/Colômbia/Peru, por seu caráter predominantemente etnográfico, permitem identificar, além da grande diversidade social, cultural e étnica da região, uma complexidade muito grande no que tange às estratégias locais de implementação da política nacional de segurança, em decorrência tanto de sua condição fronteiriça, quanto pelo fato de essa região ser o ponto de partida na rota do tráfico de drogas que vai da Colômbia à Europa – na confluência entre Tabatinga, no Brasil, Letícia, na Colômbia, e Santa Rosa, no Peru.
No contexto de fronteira, os crimes vinculados ao tráfico de drogas recebem atenção redobrada das autoridades policiais e judiciais. Em contrapartida, aquelas práticas ilícitas consideradas de menor importância, por não merecerem o repúdio social, mesmo que implicando na utilização da violência física, ou que burlem normas de circulação de bens entre os diversos países, são colocadas em segundo plano, reduzindo as chances de criminalização e punição oficial.
A fronteira não é apenas algo que separa, que obstaculiza, que impede, mas também um espaço social e culturalmente constituído de interação e negociação, tendo em vista os múltiplos fluxos que propicia. O espaço de fronteira viabiliza não só a circulação de pessoas, mas também de mercadorias, bens e serviços, lícitos ou não. Pela complexidade que esse contexto apresenta, articulando diversas formas de representação, identificações/identidades, hibridismos culturais e étnicos, na confluência entre nações, as relações sociais adquirem uma dinâmica própria, congregando negociação, aliança, conflito, diferença, assim como diversas lógicas de poder. O que se percebe neste ambiente não é a lei em sua efetividade, mas as dobras nas quais a lei se flexibiliza ou perde seu significado original, seja nas práticas dos cidadãos comuns ou nas ações dos representantes do Estado.
Em território de fronteira, a lei e a fiscalização operam pelo estabelecimento sempre flexível de limites e padrões de atuação, e são muitas vezes as escolhas morais e seus particularismos, e não a aplicação das normas legais universais, que definem o âmbito de sujeição dos indivíduos ao controle penal. São as apropriações seletivas das regras formais ou informais que vão, em última instância, definir quem são os alvos das políticas de vigilância e controle. As normas do Estado e o funcionamento das instituições estatais, colocados em confronto com normas costumeiras e particulares de grupos sociais dos mais diversos (como congregações religiosas, lideranças políticas locais, povos indígenas ou facções criminais), em regiões de fronteira são ainda mais confrontados com o chamado pluralismo jurídico, tendo que confirmar cotidianamente sua legitimidade social e seu poder de garantir a aplicação da lei.
A dinâmica social que separa e cataloga os comportamentos lícitos dos ilícitos na fronteira Norte do país, onde a crise carcerária eclodiu, com a decapitação de presos por grupos rivais, pode ser tomada como microcosmo da realidade nacional e das políticas de segurança pública do Brasil contemporâneo. Por um lado, discursos de lei e ordem, emitidos de posições de poder político (secretários e ministros, juízes, promotores e policiais), legitimados social e politicamente, buscam lidar com a falência do modelo tentando reforçar simbolicamente as suas bases, deixando de lado o fato de que, para além da dicotomia imaginária entre bandidos e cidadãos de bem, o cotidiano social é bem mais complexo e as fronteiras entre legal e ilegal são bem mais permeáveis. De outro lado, a lógica da sujeição criminal sobre grupos específicos acabou criando padrões de criminalização que tanto segregam quanto aproximam determinados perfis sociais, produzindo identidades e criando vínculos cada vez mais duradouros.
Neste cenário, e em um momento no qual a difícil construção de uma legalidade democrática e universalista com base na Carta de 88 desmorona a olhos vistos, tanto pelo esfacelamento das elites políticas quanto pela perda de adesão à narrativa constitucional de direitos, não surpreende que as organizações de estilo mafioso vão ganhando terreno, estabelecendo vínculos de confiança, corrompendo agentes públicos e reelaborando os mecanismos sociais para a administração dos conflitos e a barganha de privilégios desigualmente distribuídos.
Distantes do cotidiano de uma conflitualidade social que transborda dos mecanismos institucionais de controle, os burocratas do poder central lançam um novo plano de segurança, que reitera o que já vem sendo apresentado há pelo menos 20 anos, desde que as crises da segurança pública passaram a cobrar uma resposta de Brasília. O ceticismo predomina entre os operadores de um sistema já habituado a períodos de ebulição que não resultam em reformas estruturais ou em inovações necessárias para o enfrentamento do problema.
O mais novo plano já nasceu fadado a ser em seguida descartado, lançando propostas como a mudança da matriz curricular para a formação dos agentes de segurança pública (uma das poucas coisas em que se avançou na última década), propondo a criação de cinco novas penitenciárias federais (quando a escassez de vagas ocorre nos sistemas estaduais), ou ampliando o efetivo da Força Nacional para 7 mil homens, que serão retirados das policias estaduais, já combalidas em matéria de efetivo, qualificação e valorização das suas carreiras. Seria difícil pensar em algo mais inócuo e superficial, mas, diante do agravamento da crise, dias após o lançamento do plano, o governo se superou, sugerindo a intervenção das Forças Armadas no sistema prisional dos Estados.
Ao contrário da falsa polaridade sustentada por defensores do atual governo, de que as políticas de segurança confrontariam os lenientes e sonhadores defensores dos direitos humanos com os adeptos do endurecimento penal e do combate ao crime, a verdadeira disputa que se coloca hoje em torno das políticas de segurança pública é a que confronta de um lado o populismo punitivo, sempre pronto a oferecer soluções mágicas e conquistar o aplauso de cidadãos amedrontados pelo aumento da violência e do crime, e de outro a que sustenta a necessidade de aperfeiçoar os mecanismos de gestão, integrando os entes federativos (União, Estados e municípios), em uma arquitetura institucional onde cada um assuma responsabilidades e preste contas à sociedade.
Na prática, sem avançar nas questões estruturais, reformando as polícias na direção de uma maior integração, adotando mecanismos como o ciclo completo de policiamento, a redução dos níveis hierárquicos e dos padrões burocráticos de investigação criminal, e repensando uma política de drogas que superlota presídios, as medidas apresentadas não passam de paliativos, e com cada vez menor eficácia.
A novidade é que a violência já transbordou as margens onde foi naturalizada, e instituições que já tiveram a pretensão de liderar o processo de modernização do país, como as carreiras jurídicas, foram tragadas pela lógica dos casuísmos e da falta de critérios universais de tomada de decisões, fazendo com que se tornem cada dia mais imprecisas as fronteiras éticas entre o legal e o ilegal. Sendo assim, resta o recurso à decapitação, deixando claro quem é que manda, impondo a supressão do inimigo e contando com o apoio público inclusive de autoridades estatais. E deve piorar.
A guerra PCC x Comando Vermelho*
As facções criminosas Primeiro Comando da Capital (PCC) e Comando Vermelho (CV) brigam pelo domínio do tráfico de drogas nas fronteiras do Brasil. Por isso, estão em guerra: apenas nos primeiros 15 dias do ano, mais de cem presos foram brutalmente assassinados em massacres ocorridos em penitenciárias do Amazonas, de Roraima e do Rio Grande do Norte. No total, pelo menos mais 25 facções criminosas participam dessa disputa, apoiando o PCC ou o CV.
Enquanto o paulista PCC, após matar o narcotraficante Jorge Rafaat (que era o grande intermediário entre traficantes paraguaios e brasileiros), em junho de 2016, passou a dominar o tráfico de drogas e de armas na fronteira com o Paraguai, o fluminense CV, via Família do Norte (FDN), controla a fronteira com o Peru, no caminho conhecido como Rota Solimões.
De acordo com o procurador de Justiça Marcio Sérgio Christino, especialista em investigações sobre o crime organizado, PCC e CV firmaram aliança no final dos anos 1990. Naquela época, a facção paulista começou a vender drogas no Rio por "atacado" e, ao mesmo tempo, passou a investir o dinheiro do crime na expansão de atividades em outros Estados, formando parcerias com grupos locais.
– O PCC dava aos bandidos locais a estrutura e noção de organização que eles não tinham. Por isso, acabou ganhando inúmeros simpatizantes em vários Estados, enquanto o CV consolidou o domínio na maioria dos morros do Rio – diz Christino.
Com um exército de 10 mil homens – 7 mil nos presídios e 3 mil nas ruas –, o PCC se tornou a principal facção criminosa do Brasil e movimenta, segundo o Ministério Público Estadual de SP, 40 toneladas de cocaína e R$ 200 milhões por ano. Esse status, porém, trouxe inimigos dentro do crime, que são facções menores concentradas principalmente no Norte e Nordeste.
Segundo Christino, o assassinato de Rafaat, com tiros de metralhadora calibre .50 (capaz de derrubar um helicóptero), rompeu a aliança e tornou o CV dependente do PCC.
– As consequências estão aparecendo, que são os massacres nos presídios – afirma o procurador.
Para enfrentar o PCC, o CV fez alianças com facções como a FDN, que comanda o crime no Amazonas e domina a cobiçada Rota Solimões, e determinou a morte de membros do PCC em cadeias do Norte. Em contrapartida, a facção paulista ganhou mais força nas regiões Sul e Centro-Oeste, o que consolidou o domínio na fronteira com o Paraguai.
A força da FDN é estar ao lado dos três maiores produtores de cocaína do mundo: Colômbia, Peru e Bolívia. O grupo imita o modelo do CV, com o tradicional pagamento de mensalidade por parte dos afiliados. O policial civil aposentado Antônio Gelson de Oliveira Nascimento, professor da Universidade do Estado do Amazonas, diz que, quando as lideranças começaram a ser segregadas em presídios federais, houve contato com o know-how das grandes organizações, o que permitiu o crescimento da FDN:
– Você tira o bandido perigoso do Amazonas e o coloca para dividir cela com Fernandinho Beira-Mar. O que se pode esperar desse camarada, que era inexperiente, é aprender como se faz.
*Estadão Conteúdo