Muito antes das mortes no Complexo Penitenciário Anísio Jobim (Compaj), em Manaus, inaugurarem o ano dos massacres no sistema prisional, notícias de violações nas cadeias extrapolavam as fronteiras brasileiras por meio de denúncias documentadas pela Human Rights Watch (HRW). Presente em 90 países, a organização de defesa dos direitos humanos abriu em 2013 uma filial no país. A escolha faz parte de uma campanha global para internacionalizar a entidade, uma das mais independentes e respeitadas do mundo, por meio da criação de escritórios nas "novas" e influentes democracias do planeta.
O Brasil, infelizmente, é pródigo em cases negativos: além da matança no sistema prisional, há violações mais silenciosas – nem por isso, menos graves –, como tortura policial, crimes contra comunidades indígenas, relacionadas a trabalho escravo e violências de gênero e doméstica. Documentar essas situações e denunciá-las por meio de relatórios retransmitidos pela imprensa internacional é missão da diretora do escritório brasileiro da Human Rights Watch, a pesquisadora Maria Laura Canineu.
– Somos um país que ainda mata mulheres em razão de uma cultura de machismo impregnada não só na família, na sociedade como um todo, mas também no Poder Judiciário, que, muitas vezes, não implementa as proteções já previstas na legislação – diz Maria Laura.
Aos 38 anos, natural de Sorocaba (SP), ela é formada em Direito e Relações Internacionais pela PUC de São Paulo, com especialização em Desenvolvimento Internacional e Direitos Humanos pela Universidade de Warwick, no Reino Unido. Recém-formada, morou e trabalhou com direitos humanos na Índia. Antes de comandar a filial nacional da HRW, trabalhou na subchefia para Assuntos Jurídicos da Casa Civil da Presidência, nos governos Lula e Dilma, em Brasília.
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O ano mal começou e o Brasil já contabiliza mais de cem detentos mortos em rebeliões em presídios. O que mudou no sistema prisional brasileiro entre os massacres do Carandiru, em 1992, e do Complexo Anísio Jobim, em 2017?
Em relação ao sistema prisional e aos direitos humanos, infelizmente, não dá para falar em evolução. Desde o massacre no Carandiru, houve episódios desastrosos e matanças em outros presídios no Brasil. Nós temos visitado diversos estabelecimentos prisionais e registramos condições indignas e desumanas, baixo número de agentes penitenciários, baixa qualificação, descontrole completo do Estado. O sistema penitenciário está nas mãos das facções criminosas. Fala-se muito em gestão pública ou privada, mas, na verdade, já existe uma privatização, não de entidades privadas legítimas, mas dos próprios presos. Um tipo de privatização que o Estado não reconhece, mas que acontece na prática.
Uma privatização feita pelas facções?
Sim, uma privatização perversa. Já está nas mãos dos presos ou de facções. Vivemos a experiência dos "chaveiros" (detentos, normalmente líderes de quadrilhas, que gerenciam as celas e outras áreas, como a enfermaria e a cantina) no complexo prisional mais lotado do país, o de Curado, em Pernambuco (Recife). Por essa experiência, que já houve inclusive em Porto Alegre, o próprio Estado indica, escolhe e dá as chaves dos presídios (aos detentos). Isso é o retrato do sistema prisional brasileiro. Não há dúvidas de que houve uma piora desde o (massacre do) Carandiru. De 2004 a 2014, a população prisional brasileira cresceu em 85%. Vivemos o fenômeno do encarceramento em massa, desvinculado de uma política de investimento em infraestrutura. Pouco se falou nesses dias sobre a falta absoluta de possibilidade de ressocialização.
A situação parece tão fora de controle que a ressocialização já não é nem lembrada?
É o grande furo do plano que o ministro Alexandre Moraes lançou (Plano Nacional de Segurança Pública). Embora ele tenha falado coisas que as pessoas queriam ouvir, como a necessidade de diminuir o número de presos provisórios e de garantir assessoria jurídica, tenha dito mais de uma vez que construir presídios não é a solução, o fato é que o plano está assentado na construção de cinco presídios federais. Faltou o comprometimento em relação à ressocialização. Dados do Ministério da Justiça de 2014 já mostravam que somente 10% dos presos tinham acesso a alguma atividade educacional e apenas 16% a alguma atividade laboral.
O Presídio Central, em Porto Alegre, já foi considerado o pior do Brasil pela CPI do Sistema Carcerário no Congresso, em 2008. Hoje, a regulação da paz interna se dá por meio de pactos entre o Estado e as facções.
Se existem, esses pseudoacordos estão fomentando uma bomba. É o Estado se abstendo de sua obrigação central: garantir a ordem e a segurança nos presídios. Uma pessoa que entra no presídio e se associa a uma facção criminosa busca a sua segurança, sua sobrevivência no sistema ou a de sua família fora dele. Quando o Estado permite que facções se organizem e controlem um presídio, está facilitando o recrutamento, porque, cada um que entra, tem de escolher qual grupo representa. Não existe um estabelecimento neutro ou a possibilidade de cumprir sua sentença sem se filiar e sem buscar proteção por parte de alguma facção, já que o Estado não está fazendo sua parte.
Qual sistema de gestão é melhor do ponto de vista de proteção aos direitos humanos: público ou privado?
Qualquer gestão que se faça de um sistema prisional deve privilegiar os direitos mais básicos da pessoa: dignidade, vida e integridade física. Não nos manifestamos sobre qual tipo de gestão é mais apropriado. Qualquer tipo deve preservar os direitos fundamentais da pessoa. Temos visto em nossas investigações que gestões privadas não têm provido melhores resultados do que gestões públicas, pelo contrário. Nas gestões privadas, temos visto baixa qualificação e baixos salários dos agentes penitenciários, número insuficiente, pouco treinamento, o que tem ocasionado alta rotatividade. Os agentes têm medo, não têm segurança nem condições de trabalho. Vimos um presídio gerenciado por uma empresa privada cujo local de descanso dos agentes era no refeitório.
Após os massacres em Manaus, Boa Vista e Nísia Floresta (RN), algumas autoridades se manifestaram dizendo que "tinha que matar mais", que "tinha que fazer uma chacina por semana". Como é defender os direitos humanos em um país onde, para muitos, "bandido bom é bandido morto"?
Não acredito que a maior parte dos brasileiros (pense assim). Uma pesquisa recente do Datafolha fez exatamente essa pergunta. A gente está no mínimo empatado. O que já é bastante grave, mas é uma melhora histórica. Vinte anos atrás, uma época de mais restrição de liberdades fundamentais, mais pessoas entendiam assim. Toda pessoa tem direitos fundamentais, sejam presos, sejam policiais. As organizações como a Human Rights Watch tentam fazer com que o Estado, porque é ele o responsável pela observação e o respeito aos direitos fundamentais, respeite esses direitos. Você vê algumas autoridades, inclusive o (então) secretário da Juventude (Bruno Júlio), que disse que deveria haver massacre toda semana. Essa é uma visão equivocada, não tenho dúvidas. O homicídio de um detento é uma violação do direito mais básico, que é o direito à vida. E é uma falha do Estado. Essa visão (do ministro) ignora o que esse massacre significa para a população: mostra o poder das facções e a negligência dos governos, tanto de direita quanto de esquerda, de manter o controle. O poder das facções não é só uma ameaça aos próprios presos, mas também para a polícia e para a sociedade. A gente tem noticiado a vulnerabilidade dos agentes, da polícia e do Estado quando adota uma política de violação dos direitos humanos. Quem viola os direitos humanos viola o direito da população, da sociedade como um todo. Não só os direitos de quem a população costuma chamar de bandidos.
Qual é o principal problema de direitos humanos no Brasil?
O Brasil teve avanços nos últimos anos, é um país que reconhece, diferentemente de outros, que ainda não avançamos o suficiente. O país também admite que, para resolver esses problemas, precisaria de uma reforma estrutural. Entre os problemas mais sensíveis, estão os relacionados à insegurança pública. Isso envolve violações cometidas por agentes estatais. Não ser torturado é um dos direitos mais consolidados do ponto de vista internacional, e o Brasil ainda falha. Existe tortura dentro das prisões e nas abordagens policiais. Também vemos violações relacionadas à questão de gênero e violência contra mulher. Somos um país que ainda mata mulheres em razão de uma cultura de machismo impregnada não só na família, na sociedade como um todo, mas também no Poder Judiciário, que muitas vezes não implementa as proteções já previstas na legislação. Há também violência no campo e contra a comunidade indígena.
No Brasil, direitos humanos é visto como um assunto "da esquerda". É possível despolitizar o debate sobre o tema?
Não é só possível, é necessário que se desvincule. Os direitos humanos surgiram historicamente como forma de proteger o cidadão dos abusos do Estado. A Declaração Universal dos Direitos Humanos e todos os tratados surgiram a partir de grandes tragédias que ocorreram no mundo, como o Holocausto. A norma internacional veio para comprometer os Estados de que tragédias, massacres e violações graves, como as da II Guerra Mundial, não acontecessem mais. Os direitos humanos não devem ter partido, não devem ter opções políticas, raça, cor. Servem para proteger a população de abusos governamentais. É muito perigosa a politização. Estamos vivendo um processo de populismo, de autoridades que defendem que direitos humanos não ajudam a sociedade, discursos de que direitos humanos servem para proteger poucas pessoas, não a maioria. Você sacrifica o direito do outro em prol do que pensa a maioria. A gente tem visto acontecer isso na Europa, nos EUA e no Brasil, (pessoas ou grupos) que culpam as organizações de direitos humanos ou o direito das pessoas pela estagnação econômica, o terrorismo, o número de refugiados. Isso é perigoso. Os direitos humanos só podem sobreviver no momento em que você tem empatia. É um grande equívoco acreditar que você pode sacrificar os direitos humanos de algumas pessoas em prol do que, em tese, pensa a maioria, porque amanhã você pode ser a minoria.
Como vocês trabalham na prática? Qual o tamanho da equipe no país?
A Human Rights Watch é uma organização que muita gente acha que é enorme, com um exército de pesquisadores. Na verdade, é bastante enxuta, com poucas pessoas que se dedicam profundamente e exclusivamente para a documentação das violações. No mundo, somos 430 pessoas, no Brasil, basicamente três pessoas. Eu, que faço a supervisão da pesquisa e a parte de política externa, um pesquisador, que é a pessoa que vai até os locais de privação de liberdade, e uma pessoa que me ajuda na parte administrativa. No momento, estamos fazendo uma pesquisa sobre violência doméstica, então esse pesquisador de campo tem ido aos Estados para verificar como as medidas de proteção da mulher têm sido implementadas. Raramente, a gente se manifesta sobre questões que desconhecemos e que não possamos informar dados de uma pesquisa nossa. É um trabalho muito desgastante, mas um sacrifício que vale a pena. Por mais que haja desastres, desgraças com relação aos direitos humanos, a gente vê alguns sucessos e como temos contribuido para ele. Em países como o Brasil, que tem tantas coisas para se fazer, a gente, infelizmente, não consegue cobrir todos os assuntos. Escolhemos os assuntos em que a gente possa ter uma voz importante. Se vemos que um assunto está bem documentado e que já houve avanços, escolhemos outro, de acordo com o impacto, com a nossa experiência fora do Brasil.
Há algo prático, de mudança, que se possa fazer, além dos relatórios e denúncias?
São três pilares: investigação, exposição e mudança. Investigação é esse trabalho de pesquisa em campo, muito mais qualitativa do que quantitativa. Depois, com o resultado, a gente expõe por meio de notas, vídeos, relatórios, cada vez mais explorando o audiovisual. Por fim, a parte prática vem da pressão cotidiana que a gente faz para a mudança. Esse trabalho de prisões, por exemplo, nos possibilitou fazer uma lista de medidas que devem ser tomadas para reforçar o sistema penitenciário. Temos uma parte forte, que é o advocacy, que é levar o resultado dessas pesquisas às autoridades, que podem fazer alguma coisa nos planos municipal, estadual e federal.
Baseada na sua vivência no Exterior, como você posiciona o Brasil em termos de respeito aos direitos humanos?
O Brasil tem uma sociedade civil ativa, diferenciada, abrangente. Para praticamente todos os assuntos de direitos humanos existem organizações locais, nacionais e redes. Trabalhar em rede é uma tecnologia bastante brasileira, que pode ser replicada ao mundo. Essa diversidade e esse ativismo da sociedade civil você não vê em todos os países. O Brasil também tem iniciativas interessantes. Essa crise do sistema prisional mostrou como é essencial ter mecanismos fortes do próprio Estado de combate a violações de direitos humanos. O mecanismo nacional de combate à tortura, um ano atrás, já previa uma tragédia no sistema prisional de Manaus. Na área de violência doméstica, as delegacias para mulheres foram formas que o Brasil encontrou de dar um respeito integral aos direitos da mulher. Obviamente, um giro pelo mundo me trouxe perspectivas do quanto o Brasil pode fazer ainda. O Brasil é uma democracia consolidada. Uma democracia com um Judiciário forte, independente, com necessidades de mudança e também com alguns problemas. Mas tem uma imprensa livre e o reconhecimento de que ainda não alcançamos 100% de respeito aos direitos humanos. Comparando com a Índia e outros países inclusive da nossa região, como Venezuela e México, e até os EUA, fica a impressão de que o Brasil ainda deve muito em sua atuação internacional em prol dos direitos humanos. Quando falamos em imigração, um país que se construiu pela migração e pela aceitação de culturas diferentes ainda patina no respeito aos direitos dos refugiados e dos migrantes.
Em relação aos refugiados, o país poderia fazer mais, mesmo estando à distância?
A situação emergencial, a crise migratória, que tem se agravado em razão do prolongamento da guerra na Síria, não vai melhorar. Todos falam que houve um fluxo menor (no ano passado), mas, quando o frio ficar mais rigoroso e como os países estão fechando as portas e os vizinhos não têm mais condição de receber essa população, a situação pode piorar. Com a eleição de Trump nos EUA e outros governos mais populistas da Europa, há um grande medo de que a ajuda seja paralisada, principalmente no financiamento à agência de refugiados, o Acnur, e de programas de reassentamento. Temos defendido que outros países assumam a liderança nesse momento de crise, aumentando as contribuições ao Acnur e assumindo mais responsabilidades com relação ao assentamento de pessoas, recebendo pessoas. É difícil imaginar que o Brasil contribua mais com os órgãos internacionais, já está com débito grande e uma situação de crise econômica, então temos sugerido que o país se comprometa mais com programas de reassentamentos, que explore alternativas de financiamento para oferecer maior apoio aos refugiados que já estão aqui, e que permaneça de portas abertas para receber mais.