O histórico de José Serra dá pistas para que se elabore o perfil do Itamaraty sob seu comando. Paulistano de 74 anos, Serra se formou em Engenharia Civil na Universidade de São Paulo (USP) e depois disso se voltou para a área econômica, tendo feito mestrado na Escola de Pós-Graduação em Economia da Universidade do Chile e doutorado em Ciências Econômicas na Universidade de Cornell (Estados Unidos). Na política, além dos cargos de prefeito e governador e da candidatura presidencial, foi ministro do Planejamento duas vezes e da Saúde uma, quando teve atuação determinante em conflitos com laboratórios internacionais. Disso tudo se depreende: o engenheiro especializado em economia e planejamento dará caráter pragmático à política externa brasileira, e o político com pretensões presidenciais tentará deixar uma marca de sua passagem, mesmo que breve.
Na cerimônia de posse como chanceler, no último dia 18, Serra sublinhou a intenção de se nortear pelo pragmatismo e pela abertura de novos mercados. Os interesses comerciais serão o foco do novo ministro.
- Precisamos e vamos vencer esse atraso e recuperar as oportunidades perdidas. Por isso mesmo, daremos início a um acelerado processo de negociações para abrir mercado para as nossas exportações e criar emprego para nossos trabalhadores - discursou, deixando claro o caminho que percorrerá a Europa, os EUA e o Japão.
Outro sintoma a respeito do perfil comercial e pragmático de Serra como chanceler é que ele aceitou assumir o ministério após receber a Secretaria Geral da Câmara de Comércio Exterior (Camex) e a Agência de Promoção de Exportações e Investimentos (Apex), ambas até então ligados ao Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior.
Como sinal de que o Mercosul deve ser remodelado, o chanceler brasileiro fez de Buenos Aires o destino da sua primeira visita internacional. Além de se reunir com a colega argentina, Susana Malcorra, esteve com o ministro da Economia, Alfonso Prat-Gay, e o presidente Mauricio Macri, político de centro-direita que já vinha mantendo relação fluida com a presidente afastada Dilma Rousseff e que dialoga com os interlocutores sem diferenciá-los por questões ideológicas. Macri e Susana, aliás, proferiram declarações protocolares sobre o processo de impeachment brasileiro, sem dar apoios e sempre salientando a abertura a negociar.
A ex-presidente Cristina Kirchner impunha uma série de barreiras alfandegárias e freava a aproximação com a União Europeia e a Aliança do Pacífico. Dilma já articulava com Macri a superação desses entraves. Serra tem muito mais liberdade política para defender abertamente essa nova estratégia para o bloco sul-americano.
- Com os demais parceiros, precisamos renovar o Mercosul para corrigir o que precisa ser corrigido com o objetivo de fortalecê-lo, antes de mais nada como zona de livre comércio - disse Serra, na posse.
O analista político argentino Andres Oppenheimer, que vive nos EUA, conversou com Serra pelo telefone. Elogiou a forma como o chanceler se opõe aos governos "bolivarianos" e se dispõe a fechar embaixadas em países africanos na "relação Sul-Sul" que vinha sendo mantida desde Luiz Inácio Lula da Silva.
- O maior país da América do Sul passará por uma mudança importante em sua política exterior e poderia deixar de ser um aliado ideológico quase incondicional de Cuba, Venezuela e outros regimes autoritários - ressalta.
Na visita a Buenos Aires, Serra repetiu a disposição de mudar o eixo da política externa brasileira e reforçou a ideia de priorizar a Argentina como aliada. Entre 2011 e 2015, o intercâmbio comercial entre os dois vizinhos caiu 42%, de US$ 39 bilhões para US$ 23 bilhões. Do lado de fora da embaixada brasileira e da chancelaria argentina, manifestantes protestaram contra ele, o governo interino de Michel Temer e o impeachment de Dilma. No palácio San Martín (sede da diplomacia argentina), Serra teve de entrar pela porta lateral.
Diplomatas ouvidos por ZH, que preferem manter o anonimato, disseram que o novo chanceler faz o que se esperava dele, em especial ao afastar o Brasil de países como Cuba, Venezuela, Bolívia e Equador e aproximá-lo da tradicional parceira Argentina e das potências americana, europeias e asiáticas. Há convicção majoritária de que Dilma seguiria o mesmo caminho, apenas de forma mais cautelosa e não tão explícita. Alguns diplomatas ainda concordam com o professor de Relações Internacionais Oliver Stuenkel, da Fundação Getulio Vargas, que considera a mudança um "risco" de perder espaço conquistado na diplomacia "Sul-Sul".
Antes de tudo, Serra tenta dar contornos de normalidade ao governo que pretende emplacar dois anos e meio de gestão e ainda precisa lapidar a imagem brasileira para não cair no lugar comum da tradição latino-americana de fragilidade institucional. Na última terça-feira, emitiu documento a todos os embaixadores com orientações de defesa do governo interino. Passada essa etapa, pretende implementar a nova e pragmática diplomacia brasileira.
Três visões na diplomacia
1) A estratégia de Serra é bem-vista por ala do Itamaraty que considera importante responder aos países que criticam o impeachment e o governo Temer. É a forma de ganhar legitimidade externa.
2) Os críticos a Serra entendem que ele coloca acordos comerciais na "diplomacia Sul-Sul" (focada em outros países em desenvolvimento) em risco e atrapalha a reputação diplomática do país. Veem também objetivos eleitoreiros, na busca pela Presidência em 2018.
3) Um grupo intermediário vê Serra antecipando o diálogo com eventuais sucessores do venezuelano Nicolás Maduro e do equatoriano Rafael Correa, que perdem popularidade e veem oposições em seus países avançando.