– Olá senhor Paulo Ricardo e senhora Viviane. Prezada família, eu fui colega do Kauã por dois anos e meio. O Kauã era um menino bom, estudioso, animado, legal e inteligente. Eu sei o que vocês estão sentindo, chorei muito quando eu soube da notícia. Mas, agora ele está do lado do nosso maior pai, Deus... Que Deus cuide dele e e de sua família, ele foi e sempre será o meu amigão Kauã.
A mensagem é um trecho de uma carta escrita por um dos alunos do 5º ano da Escola Estadual Professora Branca Diva Pereira de Souza, no Bairro São Geraldo, que estudava com o pequeno Kauã Machado Tavares Nieto, 10 anos, morto por bala perdida na noite da última sexta-feira, no Bairro Vila Farrapos, Zona Norte de Porto Alegre.
Esta foi a forma que a professora Loreni Engelmann encontrou para falar sobre o assunto com as crianças que chegaram cabisbaixas na escola ontem. Algumas ainda choravam a morte precoce do colega. Foi o primeiro dia de aula após a tragédia, já que a escola suspendeu as atividades na segunda-feira em luto e respeito à família.
Kauã jogava bola com o pai, Paulo Ricardo Machado Nieto, 37, na praça do Loteamento Tresmaiense, quando foi atingido com um tiro no peito. Um dos disparos também atingiu o pé de Paulo. Outro homem de 26 anos que estava sentado na praça e seria o alvo também foi baleado. Ele continua internado no hospital.
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Pai pediu para avisarem a professora
Mesmo abalado e com o pé sangrando por causa do ferimento, Paulo procurou a escola no sábado para avisar a professora sobre a morte do filho, pois o menino tinha muito apreço por ela.
_ Quando cheguei no velório, o pai me abraçou e disse: "Professora, todo dia ele falava bem de ti" _ recordou emotiva.
Ao ser questionada pelos alunos, a professora entendeu que aquele seria o momento de aliviar a dor dos alunos e permitir que eles externassem os sentimentos. Ela e outras profissionais da escola conversaram por quase uma hora com a turma e fizeram uma oração. Em seguida, a professora propôs aos alunos que escrevessem uma cartinha aos pais.
– Eles estão muito tristes. A morte é uma situação que a gente não espera. É um assunto difícil de lidar porque vemos a violência, mas lá fora. Não vemos junto da gente. E não vemos nada sendo feito para diminuí-la. Os bandidos estão aí cada vez mais armados e as pessoas boas estão morrendo.
Zelo familiar era exemplo
A professora Loreni e a vice-diretora Nadir Ferrari, fizeram uma ressalva ao caso do Kauã. Segundo as profissionais, o aluno tinha o privilégio de viver alheio à violência _ realidade diferente de outros alunos _ por causa do zelo da família.
– O Kauã não tinha vivência de rua, os pais eram muito cuidadosos. Tratavam ele com muito carinho e ele transmitia esse carinho. A gente percebe quando os pais são presentes pela atitude de cada criança – destacou Loreni.
A vice-diretora lembra dos cuidados da família pela forma como ele chegava na escola. O pai o buscava no projeto social da Legião da Boa Vontade (LBV) perto do meio-dia, o levava em casa para almoçar e tomar banho e o acompanhava até a escola no período da tarde.
– Ele vinha todo cheiroso, arrumadinho, de gel no cabelo. Ele era um menino encantador, sempre queria ajudar o outro, tinha um sorriso bonito e gostava muito de bola. Vou levar isso comigo.
No dia da morte, ele praticava o esporte que mais gostava na companhia do pai que era o seu melhor amigo. Estava ansioso para ganhar o uniforme igual ao do pai, que joga em um time amador.
– A camisa chegou esta semana. Não tenho o que falar, sem palavras. Espero que ele (autor dos disparos) seja preso – lamentou o pai.
Investigação
A polícia acredita que os tiros seriam para o homem de 26 anos que foi baleado e está internado no hospital. Ele estava sentado em um banco do campinho em que Paulo Ricardo jogava futebol com o filho.
De acordo com o delegado Adriano Melgaço, a suspeita é de que trata-se de acerto de contas, possivelmente por causa do tráfico. O homem alvo dos disparos não tinha antecedentes criminais.
Testemunhas estão sendo ouvidas ao longo da semana. A polícia também procura imagens de câmeras nas redondezas que possam ajudar a identificar o suspeito.
Como tratar sobre a violência no ambiente escolar
A psicóloga e professora da Unisinos, Denise Falcke, avaliou positivamente a atitude da professora Loreni. Se o assunto não for trabalhado com as crianças acaba gerando fantasias e dificultando a elaboração da perda, avalia. A partir do caso do Kauã, a psicóloga faz alguns apontamentos que podem ajudar os profissionais da educação a trabalharem a questão da violência dentro de sala.
– É importante ter um profissional especializado para acolher o que os alunos trouxerem de sentimento, angústia e medo.
– É preciso dar espaço para que elas tirem dúvidas, transmitam o que estão sentindo e digam como viveram aquela situação.
– Após ouvi-las, é preciso tentar dar um sentido para o que aconteceu, por mais difícil que seja.
– As escolas podem focar em programas que previnam a violência e trabalhem o bullying, as habilidades socioemocionais, estratégias de resolução de conflito e o reconhecimento das próprias emoções.