Um substantivo lúdico e até então jamais associado à política se tornou o pior pesadelo de Dilma Rousseff. As pedaladas são o principal alicerce do processo de impeachment contra a presidente que terá sua admissibilidade votada neste domingo na Câmara dos Deputados – o outro é a suplementação orçamentária sem aprovação do Congresso.
Ao empurrar para Caixa e Banco do Brasil contas que deveriam ser pagas com dinheiro do Tesouro Nacional e deixar de ressarcir o BNDES em linhas de financiamento subsidiadas, o governo federal deu sobrenome ao verbete e virou clichê no meio político: as pedaladas fiscais.
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A prática ocorre quando o governo atrasa repasses a bancos oficiais, obrigando essas instituições a usarem recursos próprios para pagar benefícios como Bolsa Família ou a cobrir os juros de ações como o Programa de Sustentação do Investimento (PSI).
As pedaladas não são novidade: dados do Banco Central mostram que ocorriam desde 2001 – naquele ano, o governo Fernando Henrique Cardoso chegou a dezembro devendo R$ 1,05 bilhão a bancos públicos. A prática cresceu gradativamente nos anos seguintes. O primeiro salto foi em 2009, no segundo mandato de Luiz Inácio Lula da Silva, em razão da ampliação de programas para estimular a economia, como Minha Casa Minha Vida e PSI (para financiamento de máquinas e equipamentos), lançados naquele ano.
O segundo salto foi no governo Dilma. Logo no primeiro ano de gestão, a conta passou de R$ 8,4 bilhões para R$ 12,9 bilhões. Em 2014, o governo teve as contas reprovadas pelo Tribunal de Contas da União ao acumular R$ 52 bilhões em dívidas.
– Antes, as pedaladas eram eventuais e envolviam pequenos valores. Depois se tornaram recorrentes, com dívidas cada vez maiores e sendo prorrogadas sucessivamente – aponta o especialista em finanças públicas Mansueto de Almeida, que atuou no Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada.
Em 2013, as manobras passaram a chamar a atenção de economistas e dos próprios técnicos e diretores do Tesouro Nacional, que apontavam inconsistências na prestação das contas. Na época, o então secretário do Tesouro, Arno Augustin, teve de lidar com um "motim" dos colegas, e o ministro da Fazenda, Guido Mantega, veio a público afirmar que o atraso no pagamento de benefícios sociais e programas de incentivos eram pontuais e seriam colocados em dia. Entretanto, o quadro se ampliou em 2014 e 2015.
O efeito nefasto das pedaladas é que podem trazer a impressão de que as contas públicas estão melhores do que a realidade, pois o gasto executado pelo banco não é registrado como despesa pelo governo. Essa "maquiagem" é apontada pelas agências de risco como um dos principais fatores para a perda do grau de investimento pelo Brasil, que indica a credibilidade do país perante investidores.
– As pedaladas também são prejudiciais aos bancos públicos, pois os obrigam a usar dinheiro de correntistas e poupadores para pagar contas do Tesouro, e sem ter certeza de quando serão ressarcidos – aponta Fabio Alvin Klein, analista de finanças públicas da Tendências Consultoria.
Juristas divergem na tese de que houve crime de responsabilidade
A discussão por trás do pedido de impeachment é: as pedaladas – que nem o governo nega que tenham ocorrido – representam crime de responsabilidade fiscal? A Lei Responsabilidade Fiscal (LRF), regulamentada em 2000, prevê no artigo 36 a proibição de "operação de crédito entre uma instituição financeira estatal e o ente da Federação que a controle".
É nesse trecho que os defensores do afastamento da presidente Dilma Rousseff enquadram as pedaladas, por entenderem que, ao transferir uma conta do Tesouro para instituições financeiras, o governo fez, na prática, empréstimos com bancos públicos.
– Não há dúvidas de que o governo usou o dinheiro de bancos que controla para pagar suas contas, e como agravante fez isso em pleno ano eleitoral, trazendo a falsa impressão de que suas contas estavam equilibradas – afirma o jurista Ives Gandra Martins. – Isso é desobediência à LRF, e, portanto, crime penal.
O professor adjunto de direito financeiro da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), Ricardo Lodi Ribeiro, tem entendimento diferente. Para ele, as pedaladas não configuram uma operação de empréstimo, pois não envolvem transferência de dinheiro para o caixa do governo:
– Quando uma parte não cumpre com a outra o que está em um contrato, ela vira devedora, o que é diferente de obter crédito.
O jurista Dalmo Dallari concorda com Lodi. Argumenta que as pedaladas são um artifício contábil, que não configuram infração à lei e tampouco indicam corrupção ou uso irregular de dinheiro público.
– Não houve desvio de recursos públicos para contas particulares. O que ocorreu foi que uma quantia passou de um fundo público para outro, o que pode ser uma pedalada, mas não é crime – afirma.
Lodi, que defendeu esse ponto de vista juntamente com o ministro da Fazenda, Nelson Barbosa, em sessão da comissão especial que tratou do impeachment na Câmara, refuta o enquadramento de Dilma como responsável pela pedalada que consta no processo de afastamento – o atraso do governo para ressarcir o Banco do Brasil pelos desembolsos do Plano Safra:
– Em crime de responsabilidade deve haver dolo. No Plano Safra, não há participação direta do presidente.
Dallari e Gandra têm opinião diferente. Embora discordem se houve crime nas pedaladas, entendem que a presidente deve ser responsabilizada – inclusive por negligência – pelo que ocorre em seu governo.
As pedaladas são proibidas?
Não há referência direta às pedaladas na legislação. A Constituição de 1988 trouxe uma série de normas para evitar gastos exagerados pelos governos e a mistura de contas de bancos oficiais com Tesouro – inclusive de Estados. A Lei de Responsabilidade Fiscal detalhou quais práticas são proibidas no uso de recursos públicos, e uma delas veta a contratação de empréstimos de governos com os bancos que controla – é nesse ponto que os defensores do impeachment afirmam que houve irregularidade.
Por que a tomada de empréstimo de bancos públicos foi proibida?
Até a década de 1980, era comum que os orçamentos dos governos estivessem misturados com os de bancos públicos e empresas estatais. Havia dificuldade em identificar a verdadeira capacidade de gasto dos governos para executar programas sociais, por exemplo. Governos utilizavam dinheiros de bancos públicos livremente e, muitas vezes, sem compromisso de pagamento, o que levou muitas instituições estaduais à insolvência.
Estados ainda praticam pedaladas?
O governo federal argumenta que pelo menos 17 Estados praticam manobras semelhantes a pedaladas, com atrasos pontuais no repasse de dinheiro a bancos estatais e outras fontes de recursos. Há controvérsias entre os especialistas se essas podem ser comparadas às práticas da União. O uso de depósitos judiciais, por exemplo, está sendo discutido em ações movidas pela Procuradoria-Geral da República no Supremo Tribunal Federal.
O uso do Banrisul para pagar o 13º do funcionalismo é uma pedalada?
É uma questão de interpretação. Na opinião do especialista em finanças públicas Mansueto de Almeida, o uso do banco para esse fim, em 2015, não pode ser considerado pedalada porque o empréstimo foi contratado por servidor, e não pelo governo, que arcará com o pagamento dos juros. Além disso, tem como atenuante o fato de o dinheiro ter sido usado para suprir a carência mais básica do Estado: pagar os servidores.
O pedido de impeachment do vice-presidente Michel Temer também se baseia nas pedaladas?
Não. A denúncia é de que Temer cometeu crime de responsabilidade ao assinar decretos de suplementação orçamentária em 2015 autorizando novos gastos quando o governo já não estava cumprindo a meta ori ginal para o superávit primário – prática que também pesa sobre Dilma no pedido de impeachment que ela enfrenta. O jurista Dalmo Dallari entende que, caso a presidente seja condenada no processo que inclui suplementações, o vice deve sofrer a mesma punição.