Nocauteado por 367 votos na Câmara dos Deputados, 25 a mais do que o necessário, o mandato da presidente Dilma Rousseff foi convertido, depois do mais longo e nervoso domingo da história política brasileira, em um animal agonizante.
A estocada decisiva veio às 23h7min, pela voz do parlamentar Bruno Araújo (PSDB-PE), depois de nove horas de sessão. Representou a culminância e o desenlace de um conturbado período de quatro meses e meio que paralisou o país, levou multidões às ruas e dividiu a nação em duas facções.
Com o voto de Araújo, que provocou explosões de júbilo no plenário da Câmara e em muitos lares e ruas brasileiros, estava aceito o processo de impeachment contra Dilma. A ex-guerrilheira que entrou triunfalmente para a História como primeira mulher a assumir a Presidência conhecia o reverso da moeda. Era colocada diante da perspectiva de deixar o poder sem glória ou honra e de permanecer nos livros, para as gerações futuras, como a governante impopular e inábil enxotada do Palácio do Planalto apenas um ano e meio depois de amealhar 54,5 milhões de votos.
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A derrota deste domingo, no entanto, não é definitiva. Dilma segue presidente, pelo menos durante mais alguns dias, até que a batalha final seja travada em outro front, o Senado. Mas as perspectivas para o Planalto não são promissoras. Com o resultado na Câmara (onde só era necessário evitar que os votos favoráveis ao impeachment chegassem a dois terços dos deputados), o governo tornou-se um moribundo à espera da extrema-unção. No Senado, dominado pela oposição, bastará uma maioria simples para que o processo seja aceito. Se isso acontecer, algo de que nem mesmo governistas duvidam, Dilma será afastada automaticamente do cargo máximo da nação.
Michel Temer, o vice sem apelo popular mas com intenso poder no xadrez dos bastidores, o peemedebista que traiu a fama de discreto para fornecer sem maiores disfarces o combustível que incendiou o impeachment, pode ingressar, assim, dentro de uns poucos dias, em uma galeria exclusiva. Pode tornar-se o novo presidente da República Federativa do Brasil.
A sessão que pôs à beira do precipício uma era de 13 anos de governos petistas começou às 14h, depois de dois dias de debates no plenário e de negociações por votos e consciências nos corredores de Brasília. Rumores de que o Palácio de Planalto, depois de uma última ofensiva liderada pelo ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, havia conseguido reverter a tendência pelo impeachment haviam feito a tensão explodir a partir da noite da véspera, e todo o tipo de boatos, notícias falsas e teorias conspiratórias encontraram terreno fértil para vicejar. Quando Cunha abriu a sessão, o Brasil estava eletrizado diante da TV ou em atos públicos que mobilizaram multidões em dezenas de cidades, a favor e contra o impeachment.
Na Câmara, os deputados se aglomeravam ao redor da mesa da presidência, empurravam-se, xingavam-se, exibiam cartazes contra e a favor de Dilma, gritavam slogans já surrados pela repetição. Em meio ao tumulto, o relator do impeachment, Jovair Arantes (PTB), teve dificuldades para engrenar seu discurso. Em seguida, foi a vez dos líderes de cada partido se pronunciarem. A votação propriamente dita começou apenas às 17h45min. Os primeiros a se manifestar seriam os parlamentares de Roraima, seguindo-se uma alternância entre Estados do Sul e do Norte, mas foi aberta uma exceção para Washington Reis, do PMDB do Rio – mesmo partido e mesmo Estado que os do presidente da Câmara. A quebra da ordem foi justificada por questões médicas – Reis estaria se recuperando de uma infecção pelo H1N1. Ele aproximou-se do microfone e bradou:
– Voto sim!
Na esplanada diante do parlamento, onde grupos contra e a favor do impeachment aglomeravam-se, separados por um muro erguido para evitar conflitos, um dos lados vibrou, o outro lamentou. As comemorações alternaram-se durante o restante da votação, mas logo ficou claro que a disputa era desigual. Os votos pelo impeachment sucediam-se em ritmo frenético, quebrados de tempos em tempos pelas muito menos numerosas manifestações contrárias. Em Brasília e em outras partes do país, defensores do mandato começaram a dar sinais de desânimo. Na biblioteca do Palácio do Planalto, onde acompanhava a votação acompanhada de Lula, de alguns ministros e de governadores petistas, Dilma não tinha razões para alimentar esperanças.
Como é hábito no parlamento brasileiro, os deputados aproveitaram os instantes de exposição garantidos pelo momento do voto para fazer média com os Estados de origem e para dar alguma projeção ao próprio nome – o que rendeu as bizarrices de costume. Quase ninguém lembrou de mencionar as pedaladas fiscais, mas houve quem gritou, houve quem cantou, houve quem dedicou o voto à mãe, à "família quadrangular", "ao aniversário da minha neta", a "Campo Grande, a morena mais linda do Brasil", "à mãe nega Lucimar" e houve até quem errou o nome do partido ao qual pertencia. No meio da procissão de justificativas repetitivas, alguns parlamentares conseguiram se destacar. Jair Bolsonaro (PSC-RJ) aproveitou a ocasião para invocar o general Carlos Alberto Brilhante Ustra (1932-2015), figura-chave nos porões da tortura durante a ditadura militar, associando o impeachment ao golpe de 1964:
– Perderam em 1964, perderam em 2016. Pelo Coronel Ustra, que Dilma tanto teme – disse ele.
Em seguida, Jean Wyllys (PSOL-RJ) também causou furor, manifestando posições opostas. Declarou-se "constrangido de participar de uma farsa conduzida por um ladrão e apoiada por torturadores e analfabetos políticos", chamou colegas de "canalhas" e votou contra o impeachment "em respeito à população LGBT, aos negros dizimados nas periferias do país". Ao deixar o microfone, disparou uma cusparada na direção de Bolsonaro. Errou o alvo, acertando outro deputado.
Com a aprovação do processo de impeachment, ficou reafirmada a excepcionalidade, na tradição brasileira, dos mandatos que emanam das urnas e são cumpridos do início ao fim. Desde a proclamação da República, em 1889, o país é palco frequente de golpes, de ditaduras, de renúncias, de mudanças de regime e de alterações nas regras do jogo para permitir a perpetuação de pessoas ou grupos no poder. O caso de Dilma reveste-se de peculiaridades que, aconteça o que acontecer, prometem manter o clima político instável – e deixar em aberto o veredito da História a respeito de sua provável deposição.
Em meio à revolta brasileira, a presidente sofreu um impeachment não por estar acusada desse crime, mas por supostas manobras contábeis ilegais – as chamadas pedaladas ficais. O seu algoz foi um parlamento manchado, justamente, pela corrupção – personificada para amplas parcelas da população brasileira na figura do presidente da Câmara, Eduardo Cunha, suspeito de manter em contas no Exterior milhões de dólares obtidos por meio de propinas. Atacado, vilipendiado e chamado de ladrão ontem, durante as manifestações de vários deputados, Cunha deu seu voto sob uma trilha sonora de vaias. Foi lacônico:
– Que Deus tenha misericórdia desta nação. Eu voto sim – afirmou, mudando o placar para 230 votos contra 81.
A articulação de Cunha com o vice Michel Temer para levar o processo adiante e derrubar Dilma não colaborou em nada para apaziguar os acirrados ânimos nacionais – setores representativos da política e da sociedade estão convencidos de que o impeachment, nessas condições, não é mais do que um golpe de Estado.
Diante desse quadro, em lugar de acomodar, a votação de ontem pode radicalizar posições. Temer, que já vinha se manifestando como presidente e fazendo preparativos públicos para o seu provável governo, não dá sinais de que vá recuar. Do outro lado, os petistas e sua base de apoio dão mostras de que não vão se conformar facilmente – uma possibilidade, manifestada ontem por diferentes parlamentares, é que o partido lance uma campanha pela realização imediata de novas eleições para a presidência, talvez com Lula como candidato.
Nesse cenário complicado, ninguém põe em causa que a sessão de domingo na Câmara será vista sempre como um momento marcante para o país – mas o que esse acontecimento histórico vai significar ainda está para ser descoberto.
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