A tempestade que provocou estragos em Porto Alegre, na última sexta-feira, deixou mais do que prejuízos materiais. Desencadeou o espírito de solidariedade nas pessoas, que se traduziu em atos singelos e inesperados, capazes de aproximar vizinhos até então distantes e gente que sequer se conhecia.
De Canoas, o operador de motosserra Angelino Batista de Castro, 61 anos, soube pela imprensa do pedido de auxílio do prefeito em exercício. Em entrevista coletiva no domingo, Sebastião Melo disse que faltavam profissionais para operar as máquinas e acelerar a remoção dos troncos de árvores espalhados pela cidade.
– Estou desempregado, trabalho com motosserra desde os tempos do Exército e resolvi fazer a minha parte – diz Castro.
Leia mais
O que o temporal ensina a Porto Alegre
Do alto e em 360°: os estragos da tempestade no Marinha do Brasil
Saídas para diminuir transtornos são caras e polêmicas, dizem especialistas
O voluntário se apresentou ao Departamento Municipal de Limpeza Urbana (DMLU) com o currículo no bolso. Desde segunda-feira, trabalha de graça nas ruas e avenidas da Capital.
– Ficamos comovidos com o exemplo dele. E não é o único. Percebemos um envolvimento geral – afirma o diretor da Divisão de Limpeza e Coleta do DMLU, Felipe Kowal.
A prefeitura recebeu doações de todos os tipos, vindas de outros municípios, de empresas e de indivíduos. A lista inclui motosserras e até caminhões-pipa carregados com água potável.
Para socorrer os habitantes das áreas mais afetadas, estabelecimentos comerciais ofereceram tomadas e internet. Os próprios moradores trocaram gentilezas. Alguns deram comida e bebida aos garis que limpavam a cidade. Via Facebook, a estudante Luiza Abrantes, 26 anos, ofertou luz, água e "lugar na geladeira" para quem precisasse.
– Achei que não custava nada – explica a jovem.
Criado há cerca de um ano na mesma rede social, o grupo Vizinhos do Centro Histórico, com 6,7 mil membros, centralizou mais de uma centena de postagens desde sexta-feira. A maioria envolveu ações de cooperação mútua – e foi além do plano virtual: ganhou as ruas e avenidas da cidade.
– A tempestade serviu para unir as pessoas e para que elas se ajudassem fora do Facebook. Elas se deram conta de que podem usar essa ferramenta de forma mais ativa – diz o moderador do grupo, Rafael Brum Ferretti.
Moradores abrem a casa aos vizinhos
"Temos água e luz. Se precisarem de algo, toquem a campainha." A frase foi escrita a caneta em uma folha de ofício, logo depois do temporal, e pregada na parede da velha casa na Rua Duque de Caxias, no Centro.
No domingo, chamou a atenção da fotógrafa Mirele Pacheco, 42 anos, e foi parar no grupo Vizinhos do Centro Histórico, no Facebook. Até a tarde de ontem, havia sido curtida 237 vezes.
– Achei muito legal, por isso compartilhei – diz Mirele.
A singela oferta, renovada nesta terça-feira, caso alguém ainda precisasse de ajuda, partiu da atriz Kacau Soares, 30 anos, da irmã dela, Karen Soares, 23 anos, e do estudante Kevinn Cordeiro, 21 anos, que vivem no local. E deu resultado.
– Todo mundo em volta estava passando necessidade. Um senhor viu e veio aqui tomar banho – conta Kacau.
Frequentadores levaram água ao bistrô
A ventania na noite do dia 29 encheu o bistrô Panapaná – que funciona há 10 anos na Rua Demétrio Ribeiro, no Centro – de fuligem e barro.
Sem água e sem luz, a proprietária Val Calderan e a gerente Fabíola Miotto entraram em desespero: não bastasse a sujeira, tiveram prejuízo de R$ 3,8 mil com produtos perdidos. A notícia se espalhou na vizinhança, e teve início uma onda de solidariedade.
– Do nada, as pessoas começaram a dividir água com a gente, para ajudar na limpeza. Foi incrível – recorda Fabíola.
Entre os apoiadores, estavam a enfermeira Patrícia Martini, 38 anos, e a supervisora administrativa Deluane Teixeira, 29 anos, habitantes das redondezas.
– Não tinha como não ajudar. Sabemos da luta das gurias para manter o bistrô – diz Deluane.
Em meio à cooperação, maus exemplos
Embora os casos de camaradagem superem os maus exemplos, também houve quem se aproveitasse da fragilidade alheia. No bairro Cidade Baixa, dois homens teriam se passado por funcionários da Companhia Estadual de Energia Elétrica (CEEE) para furtar fios de luz.
– Chegaram com escada e tudo, no sábado. Eu falei com eles. Ficaram me olhando de um jeito estranho. Depois, saíram levando os cabos e ainda foram aplaudidos, porque o pessoal achava que iam restabelecer a luz – conta o bancário Wladimir Chagas, 56 anos.
Um morador do bairro Menino Deus teve o carro roubado na noite do temporal. Ele parou o veículo perto do prédio onde mora e saiu para avaliar se conseguiria avançar na Rua General Caldwell, coberta de destroços. Ao retornar, foi abordado por um ladrão armado e obrigado a entregar as chaves.