A violência que se alastra pelo Rio Grande do Sul não faz distinções. Sem farda ou uniforme, quando estão de folga, policiais civis, militares e agentes penitenciários também são alvo do crime. Tornam-se, eles próprios, vítimas da epidemia que tentam conter.
Nesta reportagem, ZH retrata os casos de quatro profissionais experientes, acostumados a atuar em situações de conflito, que acabaram na mira de ladrões quando menos esperavam, bem longe das delegacias, dos batalhões e das cadeias.
Dois deles reagiram e não sofreram ferimentos graves, mas poderia ter sido pior. No último dia 23, um colega das vítimas retratadas nestas páginas, o sargento Arilson Silveira dos Santos, tentou impedir um assalto e foi morto. Embora não sejam divulgadas estatísticas oficiais, os ataques contra servidores da segurança pública fora do expediente preocupam as entidades de classe. Os casos são cada vez mais comuns.
- Os bandidos não respeitam mais ninguém, nem quando descobrem que a vítima é um policial - lamenta o presidente da Associação de Cabos e Soldados da Brigada Militar, Leonel Lucas, que também foi assaltado recentemente.
- É sintomático. Toda semana ouvimos novos relatos - reforça Flávio Berneira Júnior, à frente do Sindicato dos Servidores Penitenciários do RS.
Nem o alto escalão escapa. Os últimos dois chefes da Polícia Civil, Guilherme Wondracek e Ranolfo Vieira Júnior, em momentos distintos, foram atacados por bandidos. Exonerado na quarta-feira, Wondracek chegou a admitir que evitava sair de casa à noite, sinceridade que pode ter lhe custado o cargo.
O novo titular, Emerson Wendt, estudou a cultura do medo na sua dissertação de mestrado. E reconhece que, como qualquer pessoa, policiais de folga podem ser alvo de criminosos. Ainda diz adotar medidas preventivas, mas lembra que "riscos existem em todo o mundo" e que profissionais da área estão preparados para avaliá-los.
- O policial anda armado e precisa ter cuidado extra. Sabe quando pode reagir ou não - diz Wendt, que foi furtado em Madri, no ano passado.
Entre os agentes afetados pela onda de violência, a frustração é dupla. À paisana, sentem-se vulneráveis. No trabalho, reclamam, principalmente, da falta de recursos e de efetivo. O governo reconhece o problema, mas alega que a crise financeira impede novas contratações e grandes investimentos.
"Foi uma sensação horrível, de impotência"
Sargento Ricardo Agra, 51 anos, 33 deles na Brigada Militar. Atua no Quartel General da BM em Porto Alegre
"Passei por uma experiência horrível em setembro de 2015. Saí do trabalho no fim da tarde e peguei a minha esposa no serviço. Fomos de carro até uma padaria, para comprar pão antes de ir para casa. Quando paramos, dois elementos surgiram, um de cada lado do veículo.
Os dois estavam armados. Um deles apontou uma pistola para a cabeça da minha mulher e mandou ela sair. Aquilo me paralisou. Também estava armado e preparado para reagir, mas decidi não fazer nada para evitar que ela se ferisse. O assaltante foi agressivo e disse que queria a bolsa. Ela respondeu que não ia entregar, e só lembro que gritei: 'Fica quieta!' Por sorte, ele não atirou.
Enquanto isso, saí do carro e deixei que eles levassem o veículo. Enquanto fugiam, podia ter disparado. Algumas pessoas viram o que aconteceu e gritaram para atirar, mas havia muita gente na rua naquele horário. Tinha muita gente na parada de ônibus. Decidi não fazer nada, porque havia o risco de alguém se ferir. Foi uma sensação horrível, de impotência. E a minha mulher ficou muito traumatizada. Naquele fim de semana, ficamos praticamente trancados em casa. O carro foi recuperado no dia seguinte, graças à minha vivência no mundo policial e ao apoio de colegas, mas o trauma permanece. Os bandidos não fazem distinção entre as vítimas. Todos podem ser alvo de delinquentes, e isso só piora com a falta de investimentos na segurança pública. Com tudo o que tenho visto e com a falta de incentivo para a gente continuar trabalhando, decidi que vou me aposentar. Vou deixar a Brigada Militar em março ou abril. Cansei."
"A criminalidade está em todo lugar"
Escrivão de 45 anos, seis deles na Polícia Civil. Atua na Delegacia de Capturas do Departamento Estadual de Investigações Criminais, o Deic
"Fui alvo de dois assaltos quando estava fora do expediente. O primeiro foi em 2013. Estava chegando em casa e fui abordado por dois jovens bem vestidos, pedindo informações. Quando fui ajudar, me calçaram. Começaram a mexer nos meus bolsos, acharam a minha algema e ficaram nervosos. Então tentei distrair os dois e gritei: 'Olha ali, tem uma criança no carro, deixa eu tirar!' Quando olharam, reagi. Trocamos dois tiros (na foto acima, policial mostra as cápsulas deflagradas). Eles fugiram e ninguém se feriu.
O segundo episódio foi na noite de 5 de janeiro deste ano. Tinha ido ao supermercado com a minha mulher. Quando chegamos em casa, vi um Gol com vidros escuros, andando devagar. Minha mulher entrou em casa, e já fiquei com a arma na mão. O Gol passou por mim e parou. Dois homens vieram correndo, anunciando o assalto. Um deles estava armado. Só depois descobri que era arma de brinquedo. Abri a porta do carro e gritei: 'Polícia!'. Dei dois tiros. Eles saíram correndo, e o Gol arrancou. Disparei nos pneus. Consegui prender um dos ladrões. Ele contou onde os outros moravam. Liguei para colegas das delegacias de Capturas e de Roubos, e vieram me ajudar. Resultado: três suspeitos acabaram presos e dois menores, apreendidos. Na casa de um deles, encontramos o Gol usado no assalto e quatro veículos, dois roubados e dois clonados. Deu tudo certo, mas a criminalidade está em todo lugar. Não está imune quem é policial. Temos de estar cada vez mais atentos."
"No momento de folga, estava diante da morte"
Agente penitenciária de 44 anos, 13 deles na Superintendência dos Serviços Penitenciários. Atua em diferentes presídios do Estado
"Estava voltando pra casa a pé, com meu filho e a namorada, quando dois homens, um de boné e um de capuz, chegaram por trás gritando 'entrega tudo'. Quando me virei, tinha um revólver apontado para a minha cabeça. Vi o pavor nos olhos do meu filho. Qualquer reação minha poderia implicar fatalmente o fim das nossas vidas. E ali, no meu momento de folga, de um trabalho que nos suga até a alma, estava diante da morte.
A sensação de impotência é cruel. Acho que qualquer pessoa que sofre situação de violência sente isso. Mas, para nós, que representamos a segurança do Estado, é bem pior. Porque, apesar de tudo, somos um 'símbolo'. Ouvi muitas vezes de meus familiares e vizinhos: 'Nossa, até vocês estão sendo assaltados! Estamos perdidos mesmo!' Como se a violência pudesse atingir a todos, mas quando nos atinge, simbolicamente, está se dizendo à população que o jogo está perdido.
E estamos perdendo feio mesmo. Daí a gente vai trabalhar e lá depara com a falta de tudo. Principalmente com a falta de efetivo, pela ineficiência de todo esse sistema cada vez mais falido. Saímos vivos. Quantos já morreram nestes últimos tempos vítimas desta violência desenfreada? Quantos ainda precisarão morrer até que o governo reconheça a sua responsabilidade nisso tudo? Não tem como haver segurança sem policiamento. Não tem como investigar os crimes sem a Polícia Civil. Não existe possibilidade de ressocialização e controle da massa carcerária sem agentes penitenciários."
"Achei que ia morrer"
Comissário de 51 anos, 33 deles na Polícia Civil. Atua na Delegacia de Roubo de Veículos do Departamento Estadual de Investigações Criminais, o Deic
"Sofri um assalto em janeiro do ano passado na zona sul de Porto Alegre. Eram 9h20min, e me preparava para viajar para a praia com a família. Fiz tudo o que a gente orienta as pessoas a não fazerem: carreguei o carro na rua, sem observar se tinha algum estranho por perto. Me descuidei totalmente.
Minha filha já estava dentro do veículo, quando abri a porta para entrar e seguir viagem. Nesse momento, do nada, apareceu uma arma na minha testa. Estava com um pé dentro e outro fora.
Já tinha tirado a arma da cintura e estava com ela no meio das pernas. Só que, quando saquei a pistola, ela não estava bem posicionada e caiu no chão. Foi tudo muito rápido.
O assaltante disparou contra o meu peito. A bala raspou o mamilo esquerdo. Ardeu muito. Já tinha orientado minha filha sobre o que fazer se algo assim acontecesse. Ela saiu correndo, e eu, também.
O criminoso pegou minha arma e entrou no meu carro. Já estava quase dentro de casa, quando me dei conta de que a chave do veículo estava no meu bolso, e o ladrão me mandou voltar. Entreguei a chave, e ele fugiu.
Quando olhei para o meu peito, vi sangue e achei que ia morrer. Foi sorte não ter acontecido nada mais grave. Sete dias depois, o sujeito foi capturado e acabou sendo condenado a oito anos de prisão.
Hoje, cada vez que alguém aparece do lado do meu carro, está na mira da minha arma. Não consigo mais ficar tranquilo. Se nós estamos à mercê da criminalidade, imagina o cidadão comum."
Leia mais notícias sobre crise na segurança