Elissandro Spohr, o Kiko, prometeu e cumpriu. O ex-sócio da danceteria Kiss, que incendiou em 2013, matando 242 pessoas em Santa Maria, ingressou nesta segunda-feira, no fórum do município, uma ação civil por dano moral, em que pede indenização a autoridades municipais e a um integrante do Ministério Público Estadual.
Kiko alega que a boate só incendiou porque fiscais da prefeitura de Santa Maria e um promotor de Justiça, mesmo tendo feito inspeções na Kiss, nunca apontaram problemas que pudessem oferecer risco aos frequentadores do local. Entre as causas das 242 mortes apontadas por perícias estão o fato de que o estabelecimento não tinha saída de emergência, estava com janelas trancadas e a espuma do teto era tóxica (caso queimasse).
ESPECIAL: tragédia completa três anos de impunidade
Kiko alega que a preocupação do Ministério Público era exclusivamente eliminar o barulho da música, que incomodava os vizinhos - algo que foi solucionado com a colocação da espuma antirruído por parte do empresário. Hoje Kiko é um dos quatro réus por homicídio, ao lado de um ex-sócio e dois músicos da banda que tocava na hora do incêndio (um deles disparou um artefato luminoso que gerou o fogo na boate).
Kiko, na ação, exige que fiscais municipais e o promotor também sejam responsabilizados pela tragédia. Ele promete também doar todo o dinheiro das indenizações a familiares das vítimas do incêndio na boate.
- Eles vistoriaram a Kiss e nunca me avisaram de problemas que poderiam causar a morte das pessoas - diz o ex-dono da boate, ao justificar o processo judicial.
A ação, que ingressou na tarde de hoje no fórum de Santa Maria, é contra o promotor de Justiça Ricardo Lozza (pelo fato de ter firmado com Kiko um termo de ajustamento de conduta que permitiu à Kiss permanecer aberta). Kiko alega que, se tivesse sido alertado que a boate continha armadilhas mortíferas, teria providenciado mudanças no local - assim como fez para eliminar o ruído.
O empresário processa também fiscais municipais, que não apontaram problemas na boate. Tanto que a danceteria recebeu da prefeitura alvará para funcionamento.
Como base para a ação cível, o advogado de Kiko, Jader Marques, usa o inquérito policial que, em 22 de março de 2013, responsabilizou seis autoridades municipais por improbidade administrativa no caso Kiss. Eles não foram processados. Das seis autoridades, Kiko decidiu agora processar Cezar Schirmer (prefeito), Luiz Alberto Carvalho Junior (ex-secretário de Proteção Ambiental), Marcus Vinícius Bittencourt Biermann (ex-funcionário da Secretaria de Finanças), Beloyannes Orengo de Pietro Júnior (ex-chefe de fiscalização da Secretaria de Controle e Mobilidade Urbana) e Miguel Passini (atual secretário de Mobilidade Urbana, na época do incêndio, era o titular da pasta que chamava-se Controle e Mobilidade Urbana). Apesar do inquérito policial ter sugerido processo por improbidade contra Marcelo Bisogno (vereador e ex-secretário de Controle e Mobilidade Urbana), Jader decidiu não mover ação contra ele, que alega que a boate já estava aberta há dois anos e com documentos em dia, quando virou secretário. O argumento foi acatado por Jader.
Sobre Schirmer e seus secretários, a ação de Kiko afirma ser evidente que "estavam plenamente cientes das condições da empresa, dos prazos de alvará, da pendência de pedidos de renovação. E, como gestores públicos dever de agir, jamais operaram para que a situação se resolvesse".
A ação também é movida contra o Estado do Rio Grande do Sul (entidade jurídica), a prefeitura de Santa Maria (entidade jurídica) e contra cinco bombeiros que fiscalizaram a boate e não apontaram riscos para os frequentadores. Um outro processo é dirigido contra os dois músicos da banda que dispararam artefatos incendiários no palco (Kiko alega "lucro cessante" pela perda da boate). Todos esses já são processados criminalmente. Marques pede que cada réu seja condenado a pagar 40 salários-mínimos como indenização (cerca de R$ 35 mil).
CONTRAPONTOS
O que diz o promotor Ricardo Lozza
Não tomei conhecimento desse documento ainda. Pretendo me pronunciar depois que receber o teor. Mas acredito que, se fosse o caso, a ação deveria ser contra o Estado e a prefeitura, não contra pessoas.
O que diz o prefeito de Santa Maria, Cezar Schirmer
A reportagem fez cinco ligações para o prefeito, que está em férias. Na primeira, sua esposa atendeu e pediu que retornasse a chamada. Nas outras quatro, ninguém atendeu.
O que diz Marcelo Bisogno:
"A boate começou a funcionar dois anos antes de eu assumir a secretaria, não fui eu quem permitiu o funcionamento da boate. No período em que fui secretário a documentação da boate estava em dia, e quando saí, o alvará dos bombeiros estava em dia. Cumpri meu papel, cumpri a legislação. Tanto que a justiça nunca me acionou para nenhuma responsabilidade."
O que diz Miguel Passini
Para mim, esse é um caso encerrado. Não vou comentar.
O que dizem Luiz Alberto Carvalho Junior, Marcus Vinícius Bittencourt Biermann e Beloyannes Orengo de Pietro Júnior:
A reportagem não conseguiu contato com eles e deixou recado nos celulares, solicitando entrevista.
TRECHO DA AÇÃO
"A família de Elissandro (Kiko) adquiriu o empreendimento depois que todos os documentos necessários já haviam sido concedidos pelo poder público, inclusive, já estando alguns deles em fase de renovação. A boate Kiss possuía regularidade documental perante a Prefeitura Municipal e perante os Bombeiros, quando foi adquirida e passou a ser administrada por ele. Kiko acreditava que havia atendido a todas as exigências dos bombeiros e da Prefeitura ao obter os respectivos alvarás. Ainda, com a certeza de que estava no devido exercício de atividade empresarial, o Autor (Kiko) compareceu ao Ministério Público para, nos autos de um inquérito civil, adequar o empreendimento a mais uma série de exigências."
ESPECIAL: tragédia completa três anos de impunidade
Nesta semana se completam mais de mil dias desde a maior tragédia gaúcha, o incêndio da boate Kiss, que matou 242 pessoas e feriu mais de 600, em Santa Maria. Foi há três anos, mas, para os familiares das vítimas, o tempo parou. Dezenas de pais mantêm quartos e objetos dos filhos intocados, como se a porta fosse se abrir e os entes queridos, voltar.
A maior expectativa dos parentes das vítimas é em relação à Justiça. Eles saíram da esperança para a descrença. Poucos imaginam que os processos judiciais resultarão em penas altas para os réus. A maioria critica é a ausência de autoridades entre os processados - ao contrário do que ocorre em outros países, onde governantes foram condenados ou renunciaram por desastres similares ao da Kiss.
Confira o site sobre os três anos da tragédia em Santa Maria, com reportagem especial, vídeos e galerias de fotos, clicando na imagem abaixo.