Era uma tarde de sábado, em abril de 2014, cerca de 200 pessoas se reuniam ao pôr do sol às margens da Lagoa da Conceição, em Florianópolis. Era a celebração pública do casamento de Guilhermina e Carla Salasário Ayres. Após três anos de namoro, começava uma nova fase na vida das mulheres militantes e envolvidas no movimento LGBT.
- Nos conhecemos em 2012 e começamos a pensar em fazer nosso casamento mais por uma questão política. Naquele momento, era importante a conquista da união estável - conta Guilhermina.
Na semana passada, quando a comissão especial que discute o Estatuto da Família na Câmara dos Deputados aprovou o texto principal do projeto, com a definição de família como a união entre homem e mulher, Guilhermina e Carla sentiram que havia ocorrido um retrocesso.
- Foi uma tentativa de barrar todos os avanços que tivemos. Seria ilusório imaginar que negros sairiam da senzala, que LGBTs iriam sair do armário, que pobres iriam sair do gueto e que as mulheres iam conseguir espaço sem haver uma reação conservadora. Acho até natural, mas é preocupante imaginar que existem pessoas que não conseguem conviver e aceitar a pluralidade - diz Carla.
Reação em todo o país
Assim como Carla e Guilhermina, em todo o país houve reações sobre a decisão da Câmara.
A Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) de Santa Catarina repudiou o projeto. Após a aprovação dos deputados, o texto deve continuar tramitando até chegar ao Senado. A proposta levanta a discussão sobre os mais de 190 arranjos familiares existentes. Segundo especialistas contrários à proposta, se aprovada, pode representar um retrocesso aos direitos adquiridos.
Presidente da Comissão da Diversidade Sexual da OAB/SC, a advogada Margareth da Silva Hernandes, rechaçou o projeto que na avaliação dela "nasce morto inconstitucionalmente". Margareth lembra que em 2011 o Supremo Tribunal Federal reconheceu o casamento entre pessoas do mesmo sexo.
- O Estatuto da Família quer retirar os direitos, excluindo casais do mesmo sexo e outros arranjos familiares. Com isso, essas pessoas podem perder políticas públicas, como serviços de saúde e educação. É uma perda de direitos já conquistados.
Conceito se modificou com o tempo
O Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísticas (IBGE) define família como o conjunto de pessoas ligadas por laços parentescos na unidade doméstica. Segundo o Censo de 2010, o último realizado no país, em Santa Catarina haviam 1,9 milhão de famílias - 2.019 declararam viver com companheiros do mesmo sexo.
A especialista em Direito da Família Melissa Barbieri, integrante do departamento de Núcleo de Identidades de Gênero e Subjetividades da UFSC, explica que no final do século 18 o conceito de família era atribuído à classe burguesa, exclusivamente pelo casamento entre homem e mulher.
- Homens que se relacionavam com mulheres negras, por exemplo, não podiam se casar com elas. A Constituição de 1988 abriu outras possibilidades de configuração familiar, como por exemplo a possibilidade da união estável e ainda outros núcleos reconhecidos como família, como é o caso dos irmãos que vivem juntos e perderam os pais, configurando a família anaparental - diz Melissa.
A doutora em antropologia e professora da Univali Micheline Ramos de Oliveira observa que existe uma diversidade enorme de arranjos familiares. Entre eles está a união de dois adultos - de sexos diferentes ou mesmo sexo - que têm filhos biológicos ou adotivos; a família parental, em que um único adulto vive com os filhos; família recomposta, quando duas famílias se dissolvem originando uma nova, etc.
- Não podemos mais definir família como a união entre um homem e uma mulher, assim estaríamos marginalizando e agindo de forma preconceituosa em relação a outros arranjos - diz Micheline.