Há duas possibilidades de cruzar com o ex-governador Tarso Genro às primeiras horas da manhã: no Parque Moinhos de Vento, na Capital, ou no calçadão de Copacabana, no Rio. Depois que deixou o governo, Tarso e a mulher, Sandra, se dividem entre a casa em Porto Alegre e o apartamento que ele comprou no Rio para ser a segunda residência da família.
- Não me mudei para o Rio, como dizem. Passo lá uns 10 dias por mês, porque gosto da cidade e tenho contatos políticos - disse o ex-governador na sexta-feira, em seu escritório no bairro Moinhos de Vento, onde conversou com ZH por uma hora e 15 minutos.
Sem mandato, Tarso se divide entre os livros - está relendo uma coletânea de contos de Thomas Mann e El corazón late a la izquierda, de Oskar Lafontaine -, as articulações políticas e os debates sobre o futuro da esquerda. Escreve crônicas e ensaios e emite opiniões pelo Twitter. Em outubro, vai a Madri e Lisboa para um ciclo de palestras. Acompanha à distância e com olhar crítico os governos de Dilma Rousseff e de José Ivo Sartori e refuta as acusações de que afundou o Estado.
Assista a trechos da entrevista com Tarso
O senhor recebeu R$ 800 da pensão de ex-governador (hoje em R$ 30,4 mil) nesta sexta?
Acho que sim, o pessoal está conferindo (risos). Felizmente, tinha algumas reservas, mas obviamente a gente está de olho.
Mas como foi a sensação de receber a primeira parcela de R$ 600 no final do mês passado?
Para uma pessoa de classe média como eu, que tem algum tipo de reserva para enfrentar essa situação, é mais um sentimento de solidariedade aos outros que desperta na gente. A minha mulher tem uma renda, tenho uma reserva e isso não chega a abalar as nossas condições de vida. Mas, certamente, para as pessoas que dependem diretamente do salário para viver e pagar as contas, isso é uma coisa muito grave, gera uma sensação de perda muito grande.
Como estaria o Estado, hoje, se o senhor tivesse sido eleito no ano passado?
Continuaria fazendo a mesma coisa que fiz: jogando com o caixa único, como disse que ia fazer antes de assumir e fiz o tempo inteiro, já teria encaminhado desde a data posterior às eleições um projeto para arrecadar recursos em ações que têm liberação mais rápida, projetos menos complexos que poderiam colocar dinheiro em caixa.
Por exemplo?
A complementação de reforma de estradas no Rio Grande do Sul é um dinheiro bastante fácil de ser trazido, basta apresentar projeto e, tendo espaço fiscal, eles liberam. Esse dinheiro iria para o caixa e, enquanto não fosse gasto nas estradas, sempre tem aquele espaço de giro de caixa. Estávamos preparando um conjunto de ações sobre o governo federal para obter as compensações previdenciárias (corresponde ao ressarcimento a Estados e municípios de contribuições ao INSS pagas por trabalhadores da iniciativa privada que se aposentaram no serviço público). Iríamos demandar sobre o governo federal para receber recursos que são devidos para a CEEE. Iríamos apertar ainda mais a cobrança da dívida ativa do Estado. Iríamos continuar a qualificação tecnológica da Fazenda para apertar a fiscalização. E iríamos continuar com a política de horizontalização dos benefícios fiscais para atrair empresas de fora do Estado e de fora do país. E iríamos continuar esse processo de reestruturação da dívida pública.
O seu governo não convivia com o Joaquim Levy na Fazenda. O senhor teria força política para enfrentar o ministro?
Já enfrentei Levy em outras oportunidades.
Quais foram?
Uma delas foi quando começamos a discutir, no Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social, o rebaixamento da taxa de juro. Quem ponteava a posição de não rebaixar o juro era Levy (então secretário do Tesouro Nacional). Quando lancei as bases da expansão das universidades federais, Levy defendia que deveríamos ter quatro ou cinco universidades de alta qualidade e deixar a situação evoluir no sentido da privatização do Ensino Superior. Tivemos embates duros, mas as propostas que encaminhei o presidente Lula adotou. Agora, o Levy é um técnico qualificado, é uma pessoa que tem rigor tecnocrático para fazer as coisas. A questão não é o Levy. Quando se enfrenta uma posição da Fazenda, estamos enfrentando a própria Presidência da República, porque não é crível que um presidente terceirize para um ministro a condução da vertente político-administrativa mais importante do seu governo, que é a Fazenda.
A presidente Dilma terceirizou?
Não sei se ela terceirizou explicitamente. Sei que o que está sendo aplicado neste momento é uma política que não coincide com as políticas para as quais ela foi eleita e com as políticas desenvolvidas pelo presidente Lula.
Ministro de Lula: a relação próxima com o ex-presidente levou Tarso a comandar três pastas: Educação, Relações Institucionais e Justiça. Também chefiou o Conselhão.
O que a presidente Dilma poderia fazer diante dessa situação que as contas chegaram nos últimos meses?
O que estamos passando agora não pode ser descolado da crise mundial. Tudo se trata do seguinte: como um governo intermediário, de um país intermediário no concerto das nações, se coloca nessa relação com a globalização diante da crise mundial? Ou o governo adota os remédios que se originam dessa crise, que são recomendados por aqueles que querem socializar os efeitos da crise, ou se opõe a eles. E se opor a eles significa ter uma política determinada, de interesse nacional. Isso pode ser examinado no que fez a Grécia, que resistiu e resistiu bem, conseguiu concessões importantes. Aquilo que fez a Argentina naquele período, que não é recomendável para um país como o nosso, que é muito mais forte em termos industriais e que tem reservas de R$ 300 bilhões, e que poderia ter um enfrentamento da crise de uma forma diferente. Os remédios que estão sendo aplicados aqui no Brasil para a crise são os tradicionais. Redução das despesas orçamentárias para políticas sociais e para investimentos em infraestrutura, elevação da taxa de juro a uma situação astronômica novamente, redução das funções públicas do Estado em diversas áreas e aumento de impostos.
Como se financiaria esse Estado forte?
Isso é muito simples, o Brasil tem um estoque de recursos interno, que acumulou durante esse período, espetacular. Só que para fazer isso tem de diminuir as desigualdades sociais. E para diminuir as desigualdades sociais, tem de distribuir renda fortemente, sem cair nessa extorsão da elevação da taxa de juro e se endividar ainda mais. Então, para alavancar o mercado interno como se alavancou naquela oportunidade tem de diminuir a distância entre a base e o topo. Se não diminui essas distâncias, o remédio é o endividamento maior e o aumento da taxa de juro para que continue o capital financeiro global a financiar o Estado.
Dito assim parece tão fácil.
Não, não é fácil. Qualquer saída é difícil. Por isso, a saída é sempre uma opção política e programática. Se você, por exemplo, aumenta o poder aquisitivo das camadas médias, dos assalariados e dos trabalhadores, com uma mexida forte no Imposto de Renda, desonerando, e não aumentando o Imposto de Renda dessas pessoas, gera uma demanda interna nova, extraordinariamente potente. Se você propõe para determinados setores da economia financiamento para investimentos, para geração de emprego, de renda, está aumentando o poder aquisitivo dessas pessoas.
O senhor escreveu o seguinte no Twitter: "o rebaixamento de agência de risco é sinal de que o capital financeiro ainda não chegou no limite da extorsão e quer mais, indefinidamente mais". Isso significa que o Lula errou quando supervalorizou a conquista do grau de investimento?
Não. Na minha opinião, não, porque se trata de um jogo político que se faz no cenário global. Quando você se reporta a essas agências e elas estão satisfeitas com o que está acontecendo no país, isso é bom para o país, conjunturalmente bom. É natural que essa conquista seja celebrada. Agora, quando você tem uma agência de risco que deve US$ 1,3 bilhão ao Tesouro americano porque não cuidou bem dos ativos dos seus clientes e essa agência de risco rebaixa o Brasil, e isso vai ter efeito na manutenção ou elevação da taxa de juro, é óbvio que estamos perante um cenário de disputa política pesada em escala global, na qual uma parte o capital financeiro quer aumentar seus lucros, e de outra parte, queremos dar sustentabilidade para o financiamento da dívida pública.
Comando do Piratini: em 2011, toma posse como governador, na chapa com o socialista Beto Grill (E), prestigiado pelos ex-governadores Alceu Collares (PDT) e Olívio Dutra (PT).
Que desfecho o senhor imagina para essa crise política que o Brasil está enfrentando?
A presidenta vai continuar governando até o fim do mandato. Os ajustes que estão sendo feitos têm vida própria. Serão realizados e podem ser realizados sem a colaboração do Congresso, que, na verdade, estava com várias pautas-bomba, projetos para aumentar a despesa pública de maneira irresponsável. Esse ajuste vai dar algum resultado. Normalmente, quando esses ajustes são aplicados, a meia boca ou de forma completa, num primeiro momento eles recuperam aquilo que a economia perdeu e depois vem uma nova crise.
O senhor discorda de aumento de impostos, da recriação da CPMF?
Não. A CPMF é um imposto justo, que incide diretamente sobre o capital financeiro. É o imposto mais limpo e insonegável. Ele poderia ser substituído, na verdade. Poderia ser feita uma CPMF bem forte, bem progressiva, liberando as pequenas poupanças, os pequenos assalariados, os pequenos recursos que transitam no mercado financeiro, e reduzir alíquotas que incidem sobre a produção na mesma proporção. Isso faria com que o Estado arrecadasse muito mais, porque a CPMF é insonegável.
E o Imposto de Renda, que é pago pelos assalariados?
Deveria diminuir o Imposto de Renda dos setores médios e dos setores assalariados e aumentar no topo, sobre os lucros financeiros, os lucros de capital, para os altos ganhos do 1% mais rico. A redução do Imposto de Renda nas camadas médias é muito importante para aumentar a demanda interna e movimentar a economia, o que não está havendo neste momento.
Nos últimos 25 anos, o senhor foi o único governador que não aumentou ou tentou aumentar o ICMS. Hoje, é possível governar o Estado sem aumentar imposto?
Não tenho os dados da Fazenda, mas aumento de impostos em um momento de recessão econômica sempre foi negativo, porque onera o consumo popular, principalmente. Pode onerar os setores mais aquinhoados da sociedade, mas esses têm reservas para resistir ao momento de crise. Isto é um princípio, mas teria de ver a situação das contas para decidir se seria uma necessidade incontornável ou não. Não faria isso, me comprometi durante a eleição não fazer. Naquele momento, a gente dizia que era preciso reduzir impostos, como fizemos para vários setores e inclusive utilizando incentivos fiscais para fazer desoneração de impostos em diversos setores. Isso deu certo, teve um impacto positivo na economia do Estado.
Mesmo com as torneiras fechadas em Brasília seria possível encontrar alternativas?
As torneiras fechadas em Brasília só podem ser arrombadas pela política. Não é com concurso de bom comportamento. Entrei em tensão, não em conflito, inclusive com a presidente da República, em relação à reestruturação da dívida pública. Em qualquer governo, essas questões para proteger os municípios e os Estados só podem ser feitas de maneira conflitiva e não por meio de uma relação romanceada de cumplicidade política e partidária. Se fosse isso, seria muito mais fácil.
O senhor tentou a renegociação da dívida por quatro anos, o projeto só foi aprovado no fim do governo e nunca regulamentado. O senhor afirma que seria possível encaminhar novos financiamentos mesmo sem a regulamentação, mas a Secretaria do Tesouro Nacional (STN) diz que não.
A STN não é o Poder Judiciário nem tem poder de interpretação sobre as leis. A STN tem de cumprir orientação que venha da Presidência. A lei é clara, em relação ao Rio Grande do Sul não precisa de nenhuma regulamentação. Agora, a STN só vai afrouxar a chave da reestruturação da dívida por meio de uma pressão política e de uma determinação da Presidência. O atual governo fez muito bem ao entrar na Justiça. Teríamos feito isso em novembro. Estávamos prontos para isso.
O senhor entraria na Justiça para reduzir o percentual de 13% da receita pago à União ou para aplicar o que prevê a lei da renegociação?
Faria as duas coisas. Uma medida só não resolve nada. É preciso uma série de medidas, da entrada na Justiça ao uso dos depósitos judiciais, passando pela compensação previdenciária, pela disponibilidade de projetos rápidos que o governo federal tem, nos quais o Estado dá uma contrapartida e vem dinheiro direto para o caixa. Há uma infinidade de medidas. Nossa opção seria fazer de tudo para o Estado não parar, principalmente para não deixar de pagar salário.
Quando o senhor assumiu o governo encontrou R$ 4 bilhões de depósitos judiciais (dinheiro de terceiros em litígio na Justiça guardado para garantir cumprimento de sentenças) em caixa. Depois entraram mais R$ 2 bilhões. O senhor utilizou esses recursos e os do caixa único para manter a máquina. Sem isso, teria conseguido pagar os salários?
Teria conseguido. Teria reduzido investimentos que o Estado fez. Não teria chegado aos 12% da receita aplicados na saúde. Se não tivéssemos chegado aos 12% na saúde seriam cortados todos os créditos que a União poderia nos repassar. E, de outra parte, se não pagássemos a dívida não teríamos inclusive os repasses correntes da União. Então, teríamos colocado em primeiro lugar os salários. Mas vivi uma situação diferente naquela oportunidade. Vivi uma situação em que o Estado estava se movimentando desde o primeiro dia, numa forma até um pouco confrontada com o governo federal para que o Estado não parasse de funcionar. A opção do governo atual foi de adotar outra estratégia, que não seria a minha.
O senhor tem sido acusado de ter quebrado o Estado por ter dado os maiores aumentos salariais aos servidores na história recente e que terão de ser pagos até 2018. Faria de novo?
Tenho sido acusado pelas pessoas e pelos partidos que renegociaram a dívida do Estado no governo Antônio Britto. Fizeram esse contrato vergonhoso e depois aplicaram, nos seus subsequentes governos, com exceção do governo Olívio Dutra, os mais pesados arrochos salariais que o funcionalismo recebeu. É natural que queiram se desonerar de suas responsabilidades. Nosso governo fez a recuperação do arrocho salarial brutal que eles aplicaram e, ainda assim, diluído no tempo para respeitar a capacidade das finanças. Essas acusações não são sérias.
Política em família: a filha Luciana já foi companheira de partido do pai, mas, ao ser expulsa do PT, em 2003, acabou no PSOL. Em 2014, abriu o voto para Tarso no segundo turno.
Qual vai ser o seu papel na eleição municipal?
O papel que posso ter é dar opinião. Estou encaminhando as minhas tarefas políticas para ajudar as pessoas a formularem opções e projetos, levar a uma profunda discussão sobre a renovação da esquerda, sobre as questões da democracia no Brasil. Esgotei a minha face pública, de dirigente político, mas não esgotei a minha militância. Sou militante desde os 14 anos e vou ser até os 90.
Quando o senhor foi para o Rio falou em apoiar uma frente de esquerda. Essa frente poderia ser replicada em outras capitais?
Deve ser replicada sem que se force a barra das relações partidárias que existem até hoje. A visão que trabalho com companheiros do partido e de fora do partido é projetar uma visão de esquerda para a partir de 2016. Para que possa se formar um conceito de coalizão renovado, que não seja uma coalização dependente, de relações meramente de intercâmbio fisiológico como ocorre tradicionalmente no Brasil. Que se consiga uma estabilidade para governar que não seja essa estabilidade precária que todos os governos têm no Brasil a partir da Constituição de 1988, que depende sempre de uma força que estaria em qualquer governo, que é o PMDB.
Na época do mensalão, o senhor foi um dos primeiros críticos no PT a falar na necessidade de refundação. Agora, na Lava-Jato, o partido se desgastou ainda mais. O PT vai purgar muito nas próximas eleições por esses erros?
Certamente vai e, na minha opinião, merece. Quem se envolveu no partido nessas questões são pessoas muito conhecidas e que tiveram representação pública muito importante. E essas pessoas são poucas em relação ao quadro de militantes do partido. E nem é o PT o maior processado em ações de corrupção no país, nem no Rio Grande do Sul. Mas, como o partido está no governo, isso tem um efeito maior. Isso é cobrado no processo eleitoral, também pelo fato de que existe uma concertação na grande mídia para que o PT seja culpado quase que exclusivamente pelas questões de corrupção no Brasil. Sendo uma parte merecida e outra imerecida, isso vai ter efeito nas urnas e o PT vai ter, sim, um desgaste.
O fato de José Dirceu, já condenado pelo mensalão, agora aparecer na Lava-Jato complica a vida de Lula? Aliás, a PF está pedindo ao Supremo Tribunal Federal para que o ex-presidente seja ouvido.
Isso é um processo político. Não existe processo judicial que envolva a esfera da política que não seja uma questão política. Que o presidente Lula não tem relação com esses fatos é algo óbvio, caso contrário já teriam pegado e mostrado publicamente. Já teria até vazado como ocorre costumeiramente. Se o Judiciário e o Ministério Público vão fazer um movimento para colocar o presidente Lula dentro de um processo desse tipo é algo imprevisível e se resolve em esferas que não tenho nenhum acesso.
Esse raciocínio vale para Dilma?
Vale. Temos de distinguir as coisas. No financiamento privado de campanha, como ocorre no Brasil e ao qual sou contra, as relações que se estabelecem nesse processo são insondáveis pelos candidatos. São relações que se dão em cadeias que não se sabe onde começam nem onde terminam. A possibilidade de envolver um quadro político de qualquer partido é dada pelo conceito que a Procuradoria e o Judiciário trabalham em cima dos fatos. Por que não se pegou Fernando Henrique quando foi acusado de comprar a reeleição? Certamente porque não havia nenhuma prova. Mas se algum procurador quisesse abrir um inquérito naquele momento poderia ter feito, mas o não fez.
Vendo essa situação do PT o senhor não tem vontade de ir para o PSOL?
Não. Gosto muito do PSOL, é um partido generoso, mas não é uma alternativa para a esquerda, porque tem uma escassa capacidade de renovação. É um partido que aposta toda sua movimentação principalmente nas relações corporativas. Isso é importante, dá prestígio para o partido, mas tem uma escassa capacidade de transcender para a esfera da grande política e para oferecer grandes rumos para uma nação.