Uma imagem dolorosa se tornou emblema dos riscos que a imprensa corre nesta época de extremismos - de riscos e, também, de desafios, neste 3 de maio que marca o Dia Mundial da Liberdade de Imprensa. Em 19 de agosto último, o jornalista James Foley teve sua decapitação pelo grupo terrorista Estado Islâmico (EI) postada nas redes sociais. Foi um alerta: o exercício do jornalismo e a liberdade de expressão percorrem um caminho bem mais sinuoso, repleto de bifurcações, nesta segunda década do século 21. A missão premente é se adaptar a um novo e cruel contexto.
- Essas novidades tecnológicas nos levam a reforçar valores - resume o jornalista Eugênio Bucci, professor da Escola de Comunicações e Artes, da Universidade de São Paulo (ECA-USP).
A morte de Foley tem duas abordagens, segundo Bucci. Uma é "a radicalização, a polarização e a exacerbação dos argumentos, o discurso do ódio", que autorizam condutas violentas. A outra é que a cobertura necessária da imprensa ao terrorismo, em certa faixa, tem o efeito colateral de propagandear a causa terrorista. Cada assassinato praticado pelo EI só se justifica porque os terroristas sabem que, com aquilo, terão poder de mídia. É o mesmo, diz Bucci, que ocorreu no caso do ataque à revista satírica francesa Charlie Hebdo.
A situação é tão complexa que Bucci elabora um raciocínio segundo o qual "acaba valendo a pena o terrorismo", porque, "matando aquelas pessoas, os terroristas conseguem propaganda":
- Para os terroristas, considerando a exposição que conseguem na imprensa quando cometem atrocidades, o crime compensa, e isso suscita um problema ético para nós, jornalistas, porque não está colocado o caminho de não cobrir isso. É uma cobertura obrigatória. Mas como cobrir sem dar aos terroristas o que eles querem, que é a visibilidade? Parece que nós, jornalistas, nos esquecemos de que terrorismo é propaganda e que o meio dessa propaganda é a imprensa. A questão é como agir.
Esse dilema e essa responsabilidade em relação ao que é divulgado levam Bucci a uma especulação mais ampla: partindo do pressuposto de que quem utiliza as redes sociais fala de maneira que não adotaria "caso estivesse diante de 20 pessoas", ele acusa uma fanatização do discurso público.
- O ato fanático suscita um ato fanático no sentido contrário. Faço uma analogia segundo a qual nos primeiros anos da imprensa na democracia, entre 1790 e 1850, a própria imprensa não observava valores éticos. A imprensa era canal de opinião, não de informação. A democracia e o exercício da liberdade ensinou às pessoas o valor das condutas éticas, e assim a imprensa amadureceu. A ética é posterior à liberdade. As redes sociais ainda terão de passar por um processo educativo - diz Bucci.
Professor do Centro Knight para o Jornalismo nas Américas da Universidade do Texas, Rosental Calmon Alves concorda com Bucci, dizendo que "os jornalistas precisam estar mais fiéis do que nunca aos princípios éticos" para "separar o que é informação de interesse público daquilo que é propaganda", porque "muitas guerras estão sendo travadas no ciberespaço, nas redes sociais, na internet".
- Organizações terroristas já não dependem tanto dos meios de comunicação tradicionais para chegar ao público. Têm seus próprios meios. O jornalismo precisa se adaptar, entender essas mudanças radicais para enfrentar os novos desafios. Jornalistas não só correm o perigo de se tornar vítimas da violência dos terroristas, mas de ser propagadores involuntários desses terroristas e criminosos comuns, que estão cada vez mais espertos no uso das redes sociais e outras ferramentas - diz.
O diretor do Comitê para a Proteção dos Jornalistas (CPJ), Joel Simon, e a assistente de campanhas da mesma organização, Samantha Libby, elaboraram um texto em que relatam essa preocupação. "A notícia de James Foley não saiu primeiro na mídia, mas no Twitter. A imprensa enfrentou a seguinte interrogação: como informar sobre o assassinato e que partes do vídeo mostrar. Se um grupo ou indivíduo comete um ato de violência e o filma, como podem os veículos de comunicação dar informação sobre o fato sem amplificar a mensagem propagandística?", indagam.
Um exemplo ilustra esse dilema: a estratégia midiática do EI se desenvolveu a partir da atuação do líder terrorista Osama bin Laden, da Al-Qaeda. Antes de chocar o mundo com os atentados do 11 de Setembro, em 2001, a Al-Qaeda tinha relação convencional com os meios de comunicação. Bin Laden organizava entrevistas coletivas e deu entrevistas coletivas, por exemplo, aos jornalistas Peter Arnett, da CNN, e John Miller, da ABC News. Adiantou que travaria uma guerra santa contra os Estados Unidos. Perguntado sobre seus planos, ele disse, em frase que hoje provoca grande desconforto:
- Vocês verão e escutarão tudo na imprensa.
Era, ainda, 1997.
A chamada "poluição informativa" que dobra a esquina do século 21 impele o jornalista, também, a outra reação, que reforça o raciocínio de Bucci: o aperfeiçoamento e o aprofundamento de questões éticas remetem à ideia de credibilidade. Essa é a forma, tida pelos analistas, de o jornalismo se diferenciar daquilo que circula nas redes sociais, como um dia o cinema e o rádio se diferenciaram da TV.