Acumuladores ou colecionadores. Essas são algumas denominações dadas a pessoas que querem possuir algo, objeto ou ser vivo, de forma compulsiva e ilimitada. O assunto é pouco debatido, mas não é incomum. O tema deve ser levado a sério, pois, em muitos casos, o colecionismo pode se configurar como doença, e os efeitos podem ser sentidos não apenas pelo portador.
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A contadora Maria Dorilda Hallberg, 65 anos, tinha uma paixão: os animais. Tanto que dedicou boa parte de sua vida a cuidar de cães abandonados, que recolhia em sua residência, no bairro Rosário, em Santa Maria. Solteira, tratava os animais como filhos - que depois lhe deram netos, bisnetos... Conhecida como "cuidadora", não recusava abrigo aos cachorros, grandes e pequenos, que eram abandonados em sua porta.
Ao longo de 15 anos, a matilha cresceu e a casa de seis cômodos ficou pequena. Segundo José Martin Hallberg, um dos irmãos de Maria Dorilda, ela chegou a ceder a própria cama para o conforto dos caninos. Mas ela teve dificuldade de manter os cuidados sanitários da casa, do pátio e dos próprios pets - situação que piorou quando ela adoeceu. Quando morreu de câncer, no último dia 12, a idosa tinha 80 animais.
Maria Dorilda é um exemplo clássico do que é descrito por especialistas como "colecionismo de animais". Segundo Marlene Nascimento (presidente do Clube Amigo dos Animais, que assumiu a tutela dos cães de Dorilda) há em Santa Maria pelo menos outras 40 pessoas acumulando cães, gatos, pássaros ou outros bichos. A doença veste a máscara do amor.
O colecionismo é um tipo de transtorno não determinado pelo número em si, mas pelas condições gerais sob as quais vivem os bichos e os seus donos. Psiquiatras e psicólogos explicam que cada caso é único e precisa ser avaliado em busca de outros diagnósticos subjacentes ao comportamento.
Uma das características desse quadro é que o portador segue abrigando mais e mais bichos sem provê-los de condições de sobrevivência, com cuidados higiênicos, de alimentação, de saúde e, principalmente, recusando-se a doá-los para que outras pessoas possam cuidá-los adequadamente. Essa recusa, explicam especialistas, demonstra que ela não consegue pensar racionalmente, causando problemas para si, familiares, sociedade e para os animais.
Carmen decidiu doar os 80 cachorros que mantém em Itaara. Ela atribui episódios de depressão e síndrome do pânico a criação (Foto: Ronald Mendes / Agência RBS)
Carmem Maria Benevides Fellippa, 52 anos, reconhece que sua criação passou dos limites. Moradora de Itaara, ela abriga 80 cachorros em casa. Ela reconhece ter adoecido devido ao acumulo de animais e, agora, está procurando ajuda para doá-los:
- Já fui denunciada. Mas meus animais são bem cuidados e eu quero que eles sejam adotados. Eu estou doente e preciso de um destino para eles.
Heidi Ponge-Ferreira, médica veterinária e consultora em perícias técnicas sobre colecionismo, ressalta que o distúrbio psiquiátrico é apenas uma das modalidades da acumulação de animais - que também pode se decorrente de crimes de exploração de criações. No caso de transtorno mental, pode levar a uma condição de deterioração e miséria extrema, tanto dos animais, quanto das pessoas envolvidas.
- Há muito sofrimento mesmo e, não raro, compromete não só os animais, como familiares do autor, e o entorno na comunidade, levando até mesmo a risco de saúde pública - diz.
Segundo Heidi, o quadro tem alta incidência de repetição e necessita, para seu diagnóstico, de uma avaliação psiquiátrica e de psicoterapia especializada. Nesta e nas próximas páginas, saiba mais sobre o colecionismo de animais e suas consequências.
A situação foge do controle
Há 10 anos, Carmen Maria Benevides Fellippa, 52 anos, trocou uma casa própria em Santa Maria por uma alugada, em Itaara. O motivo? No novo endereço, havia mais espaço para os seus 80 cães. O amor pelos companheiros caninos, porém, já rendeu incômodos com vizinhos, além de outros transtornos. Ela agora quer conseguir novos lares para os animais.
Morando sozinha, Carmen desenvolveu síndrome de pânico e depressão - quadros que, segundo ela, foram agravados pelo grande número de pets que possui. Seu plano é ir embora para Caxias do Sul, onde moram seus dois filhos. Antes, porém, é preciso dar um destino para os animais, que ocupam boa parte de seu dia.
- Começo a cuidar deles às 7h e muitas vezes só paro a meia-noite - revela Carmen.
No pátio da residência, os cachorros ficam divididos em sete alas. Os mais velhos, recém nascidos e doentes ficam dentro da casa. Os peludos consomem 25 quilos de ração por dia, o que, no final do mês, representa uma despesa de R$ 1,2 mil. É um dinheiro que ela não tem.
Crise familiar desencadeou compulsão
Carmen lembra que a criação começou após o fim do casamento e da partida dos filhos para longe. Ela foi recolhendo um, dois, cinco, 10... Como os animais foram se reproduzindo entre si, a matilha foi aumentando, junto com os custos e o tamanho do problema. Hoje, somente a metade dos cães é castrada e as finanças preocupam.
Para pagar as despesas, ela conta com a pensão e com a venda de artesanato que produz. Uma vizinha a ajuda a limpar o pátio, dar comida, separar as brigas do bichos. Segundo Carmen, quando alguém colabora com um saco de ração, geralmente ele vem acompanhado de um cachorrinho.
- Muitas das pessoas que me julgam deixaram os animais delas aqui no meu portão - desabafa.
É preciso procurar ajuda
Quando se fala em acumuladores de animais é preciso ter bem claro uma coisa: ter muitos bichos não significa que a pessoa é um colecionador. A patologia ainda é pouco conhecida dos profissionais da saúde e da população, diz Aristides Volpato Cordioli, psiquiatra e professor aposentado da UFRGS.
- É um limite bastante tênue. Muitas vezes, a pessoa começa se imbuindo do amor pelos animais ou do papel de salvar os que estão doentes ou machucados, mas perde o senso da própria capacidade, do tamanho do problema. É um impulso sem freios. Como outros acumuladores, eles têm dificuldade de dar suas coisas, no caso, doar os animais - avalia o especialista.
Foto: Jean Pimentel / Agência RBS
O acumulador é incapaz de prover condições mínimas de nutrição, saneamento, abrigo, espaços para os bichos se movimentarem e cuidados veterinários. Em casos extremos, tem até animais mortos em casa. O transtorno leva à criação em péssimas condições e também provoca impactos no ambiente.
- Muitas vezes, a casa do acumulador tem grande quantidade de fezes e de urina e níveis de amônia muito altos. São condições anti-higiênicas para os animais e para os seres humanos. É um problema de saúde pública, que, às vezes, extrapola a casa do acumulador compulsivo e afeta a vizinhança - avalia o professor aposentado.
O psiquiatra Marcos Ferreira explica que existem relatos que mostram a associação desse comportamento com depressão, transtorno de ansiedade social e, principalmente, Transtorno Obsessivo-Compulsivo (TOC). Segundo ele, muitos fatores podem estar envolvidos e precisam ser diagnosticados.
- As obsessões podem ser diferentes de pessoa para pessoa, mas as levam a fazer coisas irracionais para aliviarem a ansiedade e o medo. E se torna um ciclo vicioso - explica.
A compulsão é uma resposta incontrolável da doença e é preciso intervir quando a situação gera prejuízos e sofrimento às pessoas envolvidas. Em geral, o doente nega o problema e recusa ajuda. O resultado imediato é a desarmonia familiar e o isolamento, que acaba aprofundando o problema.
Segundo o psicólogo Vitor Antônio Pigatto, na maioria dos casos, é necessária a psicoterapia cognitivo-comportamental, além de uma mudança ambiental para evitar a continuidade do problema.
- A psicoterapia vai ajudar o paciente a reaprender seus procedimentos do dia a dia para evitar o acumulo de animais ou objetos - explica Pigatto.
Os animais também sofrem
As consequências do colecionismo não são sentidas apenas pelos humanos. Os animais acabam sofrendo maus tratos, mesmo que esta não seja a intenção do doente. Em geral, o colecionador não percebe que os animais estão com fome, doentes ou com pouco espaço.
Organizações de defesa de animais fazem campanha permanente contra o comércio e a favor da adoção de cães e gatos (Foto: Gabriel Haesbaert / Especial)
A médica veterinária Marlene Nascimento, presidente do Clube Amigos dos Animais, já identificou e tentou ajudar vários tutores com esse perfil compulsivo. Ela conta que algumas experiências foram assustadoras. Em algumas casas, os animais literalmente se matavam. Por causa da fome, tornavam-se canibais.
Doutora em Psicologia, a médica veterinária Céres Berger Faraco, presidente do Bem Estar do Conselho de Medicina Veterinária do Rio Grande do Sul, chama a atenção para o pouco caso que se faz deste tema. Ela lembra que o poder público pouco atua para evitar o acumulo de animais, o que pode proporcionar o maior número de acumuladores.
- Muitas pessoas acreditam que a missão delas na terra é salvar os animais e acabam perdendo o controle e abrigando-os de forma exagerada. O poder público precisa agir para tratar estes casos - explica Céres.
O combate ao colecionismo enfrenta outra dificuldade: a desvalorização de cães e gatos sem raça definida, em detrimento ao dos animais de raça. Segundo a Marlene Nascimento, isso é estimulado pelo comércio, que oferta animais de tamanhos e pedigrees ao gosto do freguês. Essa possibilidade de escolha não é ofertada pelos animais de raça indefinida, impiedosamente desprezados por muitos e objeto de adoração de pessoas como Carmen e Maria Dorilda.
Por isso, as organizações que defendem os animais têm uma campanha permanente: não compre, adote.