Depois de sofrerem maus-tratos ou abuso sexual, crianças que chegam aos abrigos públicos de Porto Alegre são obrigadas a conviver com problemas como ratos e esgoto a céu aberto. E isso não é novidade: há meses, a situação segue praticamente inalterada.
No atual ritmo de reparos dos locais apontados como insalubres na Capital - uma casa a cada 22 dias - Estado e município só oferecerão casas seguras para essas vítimas da violência doméstica em 2018.
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Além dos problemas estruturais que colocam em risco a saúde dos acolhidos, Ministério Público e Justiça ainda avaliam o atendimento desses abrigos como ineficiente. A precariedade é tanta que, em julho de 2014, só uma das 47 casas não oferecia perigos à saúde das crianças, conforme inspeções do MP. Apesar de alertas do órgão sobre a possibilidade de interdição, nos últimos cinco meses, Estado e município só conseguiram sanar irregularidades perigosas em sete locais.
As últimas vistorias do MP, realizadas em dezembro de 2014, mostram que 38 das 46 casas ativas - uma passava por reforma e não abrigava mais crianças - apresentaram irregularidades que colocam os abrigados em risco. O número de casas perigosas corresponde a 83% do total de abrigos em funcionamento.
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As crianças enviadas a esses locais têm de conviver com problemas como esgoto a céu aberto, presença de ratos, fiação exposta e falta de camas - o que as obriga a dormir no chão. Mais alarmante ainda é que, para aqueles que vivem há pelo menos seis meses nessas casas, muitas ameaças não são novidade. Apesar de serem apontadas pelo MP em relatórios anteriores, feitos em julho, 35 irregularidades que representam risco à saúde dos acolhidos não foram resolvidas.
- Por serem vítimas de violência, essas crianças sofrem uma ruptura da estrutura familiar e ficam com uma marca para a vida inteira. Por isso, essas instituições de acolhimento precisam ser capazes de oferecer um cuidado que seja o mais próximo possível de uma família - explica a psicóloga Caroline Martini Pereira, presidente da Comissão de Direitos Humanos do Conselho Regional de Psicologia (CRP) do Estado.
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Além da não resolução de problemas antigos, os documentos do MP revelam também a carência de manutenção nesses locais. Nas últimas vistorias, o órgão encontrou 49 novos itens que representam perigo às crianças. Em quase 20% dos abrigos foram encontradas escadas, janelas e varandas sem proteção, e, em alguns deles, materiais de limpeza ao alcance das crianças. São irregularidades que podem levar à morte, conforme o pediatra Ércio Amaro de Oliveira Filho, diretor da Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP) e do Conselho Regional de Medicina do Estado do Rio Grande do Sul (Cremers).
- A criança vê aquela embalagem colorida e quer pegar. Pode derramar nos olhos ou ainda ingerir, o que é um risco enorme - explica o médico.
Há beliches sem proteção em metade das casas e fiação exposta em quase 20% delas. Colchões de espuma muito fina e de má qualidade, reclamação de muitos acolhidos ao MP, pois causavam dores nas costas, ainda foram encontrados em 13% das casas nas últimas vistorias.
Em infográfico, veja os problemas apontados nos abrigos:
Responsável pela fiscalização dos abrigos no MP, a promotora Cinara Vianna Dutra Braga avalia que a habitabilidade das casas melhorou desde as últimas vistorias, mas ainda são necessários mais investimentos.
- É visível o esforço das mantenedoras para melhorar as casas, mais ainda há um caminho longo a ser percorrido, principalmente na questão da insalubridade e do atendimento.
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Porto Alegre possui 109 abrigos destinados a crianças e adolescentes, sendo 47 mantidas exclusivamente com verbas públicas, 58 mantidas por convênios entre a prefeitura e entidades de assistência social e quatro mantidas por Organizações Não-Governamentais, de acordo com o MP. Essas casas acolhem atualmente 1.451 crianças e adolescentes.
Dos 47 ambientes públicos, 35 são mantidos pela Fundação de Proteção Especial do Rio Grande do Sul (FPE), do governo do Estado, e 12 pela Fundação de Assistência Social e Cidadania (Fasc), da prefeitura da Capital. Esses locais atendem 730 crianças e adolescentes, o que corresponde a 50% do total de acolhidos na Capital.
Em galeria de fotos, veja atual situação dos abrigos:
CONTRAPONTOS:
O que diz o secretário Estadual do Trabalho e do Desenvolvimento Social, Miki Breier, responsável pela Fundação de Proteção Especial do Rio Grande do Sul (FPE):
"Essas irregularidades foram deixadas pelo governo anterior, mas queremos dizer que a questão da infância será prioridade em nossa secretaria. Esperamos resolver esses riscos apontados pelo Ministério Público nas próximas semanas. Aguardamos a posse do novo presidente da Fundação, José Luis Barbosa Gonçalves, para tomar as medidas necessárias para a melhoria dessas casas. Vamos trabalhar também para que não faltem servidores, buscando as contratações necessárias. Vamos manter a previsão orçamentária de toda a FPE em R$ 90 milhões".
O que diz o presidente da Fundação de Assistência Social e Cidadania (Fasc), Marcelo Machado Soares:
"Teve uma melhora porque conseguimos fazer grandes investimentos e mudamos três casas de endereço. Para as duas casas com mais problemas, a João de Barro e a Quero-Quero, conseguimos fazer um edital para modificar a equipe de atendimento, que é feita em cogestão com uma instituição, e a previsão é mudar uma delas de lugar até março. Foram feitas melhorias em todas as casas, mas muita coisa tem de ser refeita, pois o trabalho é muito dinâmico, precisa de manutenção. O problema não é geral. O que está traçado no relatório do MP como prioridade está sendo sanado. Em janeiro, contratamos 11 novos servidores para atender os abrigos. Gastamos em torno de R$ 28 milhões no último ano para atender as casas próprias e conveniadas, e devemos gastar R$ 32 milhões este ano".
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