Até parece que ela teve a personalidade forjada para este momento histórico. Quando se fala em Angela Merkel, alguns conceitos despontam, muitos deles paradoxais: liderança, austeridade e sensibilidade. E as explicações para perfil tão complexo vão da geografia à política. Angela nasceu em Hamburgo, a cidade portuária alemã onde os Beatles deixaram os cabelos crescerem às margens do Rio Elba, quando ela tinha oito anos. Mas saiu desse símbolo da revolução cultural para acompanhar o pai, pastor luterano de hábitos frugais e disciplina rígida, e crescer em Templin, na Alemanha Oriental, no lado comunista da Cortina de Ferro.
Menina originária de dois mundos tão díspares, viveu o reerguimento alemão. Formada em Física pela Universidade de Leipzig, trabalhou no Instituto Central de Físico-Química da então Alemanha Oriental, onde viveu até a queda do Muro de Berlim, em 1989. Agora, aos 60 anos, prepara-se para emplacar uma década de chefia do governo da Alemanha unificada, em novembro. Não só é a principal líder europeia, mas, até por isso, trata-se da mulher pela qual passam os destinos de Grécia e Ucrânia, países europeus afundados em suas crises.
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- Angela é parte do que ocorre na história alemã. Representa de forma cabal os interesses do país, único que se beneficiou com o euro, movimento resultante da sua reunificação - diz Jorio Dauster, embaixador brasileiro junto à União Europeia de 1991 a 1999.
Ao tomar as rédeas do continente, ela procura preservar as conquistas alemãs. O país ficou com o poder econômico e, consequentemente, com o poder político.
- Ela se tornou uma líder incontestável, algo que, além dela, só o russo Vladimir Putin possui.
Professor de Relações Internacionais da UFRGS, Paulo Visentini não tem dúvida: Angela é a mulher certa para as atuais circunstâncias. "Perfil baixo e perseverante", pode "guiar a Alemanha e a Europa no momento de crise do euro". Mais: como política conservadora, garantiria a sustentabilidade de uma eventual solução.
Perfil moldado na Alemanha Oriental
Nascida Angela Dorothea Kasner, a chanceler se tornou conhecida pelo sobrenome do homem com quem foi casada entre 1977 e 1982, o físico Ulrich Merkel. Em 1998, casou-se com o químico Joachim Sauer. Ela própria uma cientista entendida de física quântica e dos labirintos da mente humana, ingressou na política em 1989, filiando-se ao partido Despertar Democrático. Um ano depois, entrou na União Democrática Cristã (CDU) e passou a ocupar cargos sob o governo de Helmut Kohl. Era a "menina de Kohl". Foi, entre 1991 e 1998, ministra das Mulheres e, depois, do Ambiente. Mas se notabilizou pela ousadia quando pediu, em artigo de jornal, a renúncia de Kohl quando este se envolveu em escândalos. Em 2000, fortalecida, rompeu as barreiras do gênero e passou a presidir a CDU. Teria de reerguer o partido corroído pela corrupção. Ao atingir a meta, tornou-se admirada e temida. Para alguns, calculista em sua ânsia pelo poder.
- Ser filha de pastor que foi exercer seu ministério e criar a família do outro lado do Muro marcou sua personalidade, tanto no que se refere a sacrifícios pessoais quanto pelas implicações políticas que isso tinha. A Alemanha Oriental deu a Angela Merkel as características da prudência e de ser observadora, conservadora na hora de assumir riscos, esperando o momento adequado para atuar - diz o cientista político espanhol e articulista do jornal El País José Ignacio Torreblanca, especialista em Europa.
Não era fácil o caminho de Angela. Mulher formada no comunismo, penou para prosperar na democracia cristã, dominada por homens de raiz conservadora. Superadas as barreiras, elegeu-se chanceler em 2005, 2009 e 2013, mostrando a persistência da mulher que, ainda na Alemanha Oriental, ganhou três vezes o título da peculiar "olimpíada" que se fazia por lá: a de quem falava melhor o russo, idioma no qual Angela vê "sentimento".
Uma das características mais comentadas pelos alemães é a da privacidade de Angela em um mundo tomado pelas redes sociais. A biografia Das Erste Leben der Angela M. (A Primeira Vida de Angela M.), lançada em 2013, revela histórias de sua juventude. Relata a caça por mantimentos nas prateleiras vazias de lojas da Alemanha Oriental e as noites misturando coquetéis de suco de cereja e vodca como bartender em festas da universidade. O livro diz que ela foi entusiasta do comunismo quando vivia em Leipzig. Os jornalistas Günther Lachmann e Ralf Reuth relatam o papel de Angela na Juventude Alemã Livre, na qual teria sido secretária de Agitação e Propaganda, "responsável pela lavagem cerebral" partidária - ela admite ter sido secretária da Cultura na agremiação. Mistérios assim alimentam a popularidade da líder que tem o apelido de "mãe", mesmo sem filhos.
Curiosamente, a origem no ambiente comunista também a ajuda a resolver as crises do euro. Visentini diz que, apesar das aparências, "Alemanha e Rússia têm diálogo forte" - e discreto.
- A Alemanha não quer o problema da Ucrânia dentro da UE e, ao mesmo tempo, não quer cutucar a Rússia. Ela liga de madrugada para Putin. Procura uma solução com a discrição que aprendeu a ter - diz ele.
Curiosidade: Angela fala fluentemente o russo, e Putin fala fluentemente o alemão. Ambos foram formados sob o stalinismo. O diálogo é direto. A compreensão é grande. Em relação à Grécia, com seu novo governo de esquerda, o contato que ela se acostumou a ter com sindicatos na sua formação também é útil, diz Visentini.
E, conforme Visentini, outro ponto importante, em relação à Alemanha:
- O país tem um capitalismo industrial e não especulativo, é a locomotiva europeia. Converge com a agenda financeira global, mas até certo ponto.