Atire no Pianista é o título de um dos filmes mais depreciados de François Truffaut. É a história de um pianista de bar vivido por Charles Aznavour, que aceita esconder os dois irmãos trapaceiros de uma dupla de gângsteres violentos e acaba se tornando alvo dos criminosos. O infeliz artista, que se esforça por manter distância da vida de golpes de seus protegidos, se chama Charlie. Para muitos, o melhor do filme do realizador de Jules et Jim é o título - na realidade, tomado de empréstimo do romance noir do americano David Goodis, no qual Truffaut se inspirou. É difícil imaginar um alvo mais improvável do que alguém que ganha a vida com couverts artísticos.
As primeiras informações sobre o massacre da Rue Nicolas Appert, na manhã de ontem, invocavam o filme de Truffaut. Afinal, dos 12 mortos, sete pertenciam a duas gerações do melhor do humor francês: os jornalistas Wolinski, Charb, Cabu, Tignous, Honoré, Mustapha Ourad e Bernard Maris. Alguém havia decidido atirar nos cartunistas.
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O ataque ao Charlie Hebdo tem sido descrito como consequência da sátira da publicação a dogmas religiosos. Trata-se de uma injustiça com os oito profissionais tombados. Durante 36 anos, o Charlie Hebdo fez humor com tudo que mereceu ser publicado sob forma de notícia na França e no mundo. Se profetas e crenças entraram em seu radar, foi porque o país e também o continente europeu tornaram-se, nos últimos anos, obcecados por barbas, véus, minaretes e outros símbolos. Na contramão, fanáticos encapuzados decidiram eleger a revista como símbolos de tudo que odeiam.
Nem por isso se deve converter as vítimas em mártires de uma presumida guerra de religião ou um "choque de civilizações" sob a liderança de alguns de seus alvos mais frequentes, como o presidente François Hollande e a eurodeputada Marine Le Pen. Isso equivaleria a decretar uma segunda sentença de morte para Wolinski e companhia.