O embaixador Paulo Tarso Flecha de Lima orgulha-se da coleção particular de mapas e histórias. Ambas ajudam a ambientar o confortável escritório, com vista para a Esplanada dos Ministérios e a Catedral de Brasília.
O dIplomata conheceu todos os presidentes brasileiros desde Juscelino Kubitschek, que o presenteou com uma fotografia com dedicatória. Embaixador em Londres, Washington e Roma, Flecha de Lima ainda desfrutou do convívio de Bill Clinton e da princesa Diana, amicíssima de sua mulher, a elegante embaixatriz Lúcia Flecha de Lima. Aos 81 anos, cinco filhos (um falecido) e 10 netos, Flecha de Lima mantém a rotina profissional como advogado. Um acidente vascular cerebral sofrido em 1995 dificultou os movimentos, obrigando o diplomata a se revezar entre a cadeira de rodas e a bengala para se movimentar. Mas as lembranças da carreira ainda fervilham. Algumas ele relatou em quase duas horas de conversa com ZH.
Depois de conhecer presidentes, primeiros-ministros e reis, como o senhor define o poder?
O poder é a capacidade de mudar patrimonialmente a vida das pessoas.
E que governante fez bom uso do poder?
O presidente Bill Clinton, dos EUA, tinha poder e, na grandeza dele, era humilde. No Brasil, o presidente Juscelino tinha espírito público acentuado e trato agradável. Ele mudou o país. Nossa agricultura era doméstica, e ele criou as bases para expandir o Brasil ao abrir estradas, trazer empresas e criar uma indústria automobilística com influência na economia. Tive a honra de trabalhar com o presidente Juscelino. Meu pai era muito amigo dele, que me convidou para ser oficial no gabinete no Rio de Janeiro, nos anos 1950.
Para o senhor, o que tem mais poder: a caneta ou a influência?
A caneta. Com uma canetada, você realmente faz o bem ou liquida com a vida do sujeito. É claro que influência é fundamental e, sobretudo como presidente, o fundamental é ter capacidade de montar equipe, pois não se governa sozinho.
No circuito diplomático, as grandes decisões são tomadas em gabinetes ou recepções?
Jantares e almoços são meios de criar boa vontade com diferentes interlocutores, mas as grandes decisões são tomadas na mesa de negociação.
O que caracteriza um bom negociador?
Credibilidade. Não adianta bancar o esperto, é preciso ter palavra firme, sem ser truculento, para que o oponente te respeite. Na negociação, o adversário é cúmplice. Ele também quer a solução do problema. Você tem que construir uma relação de confiança. E precisa paciência.
Onde o senhor aprendeu a negociar?
Em Minas Gerais, no CPOR (Centro de Preparação de Oficiais da Reserva). Um capitão puniu um colega nosso, e a turma me incumbiu de conversar com o comandante. Consegui convencê-lo a reduzir a punição. Foi uma escola extraordinária. Parece piada, mas é verdade.
A habilidade na negociação fez com que o senhor fosse enviado para libertar os brasileiros mantidos reféns por Saddam Hussein em 1990?
Os operários da Mendes Júnior eram usados como escudo humano, uma situação tensa. Eu já conhecia bem o Iraque, então, quando surgiu a maluquice do Saddam, fui escolhido. Aquilo foi uma armadilha que prepararam.
Uma armadilha?
Não passei em brancas nuvens pelo Itamaraty. Fui secretário-geral, sempre tive uma posição muito boa. Acho que isso incomodava as pessoas. Deram a missão pensando que eu quebraria a cara. Subestimaram minha capacidade de articular apoio.
Como foi feita a negociação para libertar os 450 brasileiros?
Foi uma novela, envolvendo semanas de reuniões. Fui até o rei Hussein da Jordânia, que era amigo de Saddam. Também tive auxílio de Yasser Arafat. Naquela época, era um palavrão aqui no Brasil falar dele, mas o Arafat ficou meu camarada e ajudou muito. O Saddam era uma figura curiosa. No fundo, ele gostava do Brasil.
Ele chegou a lhe dizer isso?
Saddam me disse: "Embaixador, a relação do Iraque com o Brasil é importante porque o Brasil é capaz de nos fornecer tudo o que um país industrializado teria condições de nos fornecer sem cobrar um preço político".
Se ele gostava tanto do Brasil, por que manteve 450 pessoas reclusas?
Na sua arrogância, o Saddam usava os brasileiros como instrumento de pressão, que não era contra nós, mas em relação ao mundo. Foi uma novela isso tudo, um episódio muito traumático, porque no Brasil havia uma comoção geral e isso chegava lá. Fiquei bastante aflito. Minha esposa decidiu ir por conta própria ao Iraque. Quando ela chegou, os brasileiros ficaram assustados. Pensaram que, se a mulher do embaixador estava lá, era porque a situação iria se arrastar.
Qual foi o momento mais tenso da negociação?
O presidente Itamar Franco, mal assessorado por um funcionário do SNI (Serviço Nacional de Informações), ordenou que eu voltasse ao Brasil, e desobedeci. Foi a primeira vez que deixei de cumprir uma ordem. Se eu tirasse os brasileiros de lá antes da hora, perderia meu poder de pressão. Você ter 450 pessoas era um enorme poder de pressão. Saímos na hora certa.
Vossa Santidade: Flecha de Lima e a mulher, a embaixatriz Lúcia, no Vaticano, em encontro com o papa João Paulo II
Ficou famosa a amizade da embaixatriz Lúcia com a princesa Diana. Como ela era na intimidade?
A princesa era confidente de minha mulher. Quando tive o derrame, ela comprou uma passagem, pegou um avião e foi até Washington nos visitar. Conheci a princesa quando ela veio ao Brasil com o príncipe Charles. Diana passava o fim de semana conosco, era admirável, simples. Chegava lá em casa e tirava os sapatos, pois não podia fazer essas coisas no palácio (risos). Ela conhecia os empregados pelo nome. Esse rapaz que hoje é o herdeiro do trono, o William, era um menininho, brincava lá em casa, contava as histórias do colégio.
E qual era a programação com a princesa?
Ficávamos muito em casa, vendo um filmezinho. Lembro de um fim de semana em que mandamos um empregado buscar um filme, e ele trouxe um que se chamava Beethoven. Como a princesa gostava de música, achei que seria a história do compositor. Só que Beethoven era o filme de um cachorro, um São Bernardo. Foi um constrangimento, mas a princesa levou na brincadeira e riu muito.
Como o senhor e a embaixatriz souberam da morte da princesa em 1997?
Estávamos em Washington, soubemos pela Hillary Clinton, que ligou para avisar do acidente. Os americanos souberam logo. Lúcia ficou arrasada, ninguém espera perder uma amiga.
O senhor foi embaixador em Washington de 1993 a 1999, período em que o Brasil deixou a lista negra da pirataria. O país, que não tinha lei de patente, aprovou uma. Foi um período tenso?
Fui o grande negociador da questão da informática e da propriedade intelectual. Isso era um abacaxi, porque a ministra de Comércio dos Estados Unidos era uma advogada de litígio, então era muito difícil lidar com ela. Usei meu velho talento adquirido no CPOR.
Nos EUA: embaixador brasileiro acabou estabelecendo amizade com o presidente americano Bill Clinton
As relações com o governo Clinton auxiliaram? Vocês ficaram próximos depois.
Eu viajava muito, sobretudo para a Califórnia, sempre buscando contatos fora de Washington. Mantive ótima relação com os ministros do presidente Clinton. Uma das minhas filhas casou nos EUA, e seis ministros foram ao casamento. Tive a sorte de desenvolver uma boa relação com o presidente. Inclusive, quando o Fernando Henrique visitou o país, Clinton me convidou para passar o fim de semana com eles em Camp David, o que causou ciúmes. Imagine um embaixador em um encontro de chefes de Estado na casa de campo do presidente dos EUA.
O senhor guarda lembranças da passagem por Camp David?
Marcou a conversa com a Hillary Clinton. Havia uma crise na região do Chifre da África, e fiquei impressionado com o grau de conhecimento da primeira-dama sobre os problemas internacionais, sobretudo na África.
O que representou esse encontro de FH com Clinton em 1998?
Foi um gesto de boa vontade dos americanos, porque o presidente, em geral, não negocia assuntos específicos. A visita criou um ambiente de boa vontade e contribuiu para esfriar as tensões, que não eram poucas por causa da informática e da propriedade intelectual.
Superado o conflito da pirataria, a imagem do Brasil melhorou nos EUA?
A imagem de um país é relativa. Alguns jornais têm uma visão preconceituosa, mas o Brasil projeta uma imagem muito positiva, de um país multirracial, com tradição pacifista. Sempre mantive o hábito de não deixar nada sem resposta. Se os jornais saíssem com artigos críticos ao Brasil, eu prontamente respondia, geralmente com tom malcriado (risos).
O senhor também passou pelos EUA durante a ditadura, em Nova York. Havia diferença no trabalho antes e depois da redemocratização?
Nunca tive problemas no governo militar. Só não conheci bem o presidente Médici. Para o pessoal que cuidava de atividades subversivas, o trabalho era diferente. No mais, tudo igual. Fui cônsul-adjunto, um trabalho comercial. Aliás, tinha muito contato com o Rio Grande do Sul, trabalhei para viabilizar o acesso do calçado de Novo Hamburgo ao mercado americano.
No livro Diário de Bordo: A Viagem Presidencial de Tancredo, o embaixador e ex-ministro Rubens Ricupero recorda do giro internacional de Tancredo Neves e cita um receio de que os militares pudessem barrar a transição. Existia o temor?
Organizei essa agenda, e o objetivo era mostrar o Brasil novo, que tinha acabado de sair da ditadura. Um objetivo, aliás, plenamente alcançado. Passamos por Vaticano, França, Espanha, Portugal e EUA.
Logo após a eleição do presidente Lula, em 2002, o senhor apostava que ele faria sucesso internacional, na contramão de muitos analistas. De onde vinha a convicção?
Lula tinha uma credencial singular: um torneiro mecânico eleito presidente do Brasil é uma façanha que impunha respeito. Além do mais, o Lula tem um talento extraordinário, um carisma muito grande. Ele não se intimida com os contatos internacionais. Não sei se ele é cara de pau (risos), mas ele enfrenta tudo muito bem. E fez um governo correto.
Ao analisar as últimas décadas, o Brasil cresceu como o senhor gostaria?
Melhoramos muito. Hoje, os empregados lá de casa têm automóvel. Isso seria impensável há 20 anos. A arrumadeira só vai trabalhar de automóvel, porque o ônibus é desconfortável. Revela uma melhora muito grande no poder aquisitivo.
Qual é a sua avaliação sobre a atual política externa brasileira?
A política externa do atual governo suscita muita controvérsia, porque tem posições que as pessoas custam a aceitar. Por exemplo: como declarar que o Brasil apoia os jihadistas, que degolam pessoas? É um passo em falso.
Israel recentemente chamou o Brasil de "anão diplomático". Errou ou acertou?
Foi uma grosseria sem limite, tanto que pediram desculpas ao Brasil. Não temos nada de anão, pelo contrário, temos grau de influência regional muito importante. Podemos não ser uma potência mundial, mas temos uma área com muita influência, que é a América Latina.
Em que área o Brasil precisa tomar cuidado na política externa?
A coisa que mais irrita um diplomata no Exterior é essa ênfase que os europeus dão à questão indígena e ecológica. Na visão dos protocolos europeus, deveríamos criar um jardim zoológico de indígenas. Não podemos aceitar essa interferência. Essa história de manter os indígenas em estado primitivo é arrogância de europeu.
Qual é o pepino que espera o próximo governo no Brasil?
Quando George Bush foi derrotado por Clinton, ficou famosa a frase It's the economy, stupid (é a economia, idiota). O próximo presidente terá de retomar o crescimento no país.
A embaixatriz Lúcia frequenta colunas sociais, é conhecida por ser uma mulher refinada. Esse perfil auxilia um embaixador?
Para um embaixador, é um ativo importantíssimo, porque a mulher contribui para o prestígio do marido. Estamos casados há 55 anos, ela enfrentou os diferentes ambientes com muita naturalidade. Hoje, passa o dia como presidente de uma entidade de caridade, a Casa do Candango. São atendidas 250 crianças e 80 idosos.
A embaixatriz foi secretária de Turismo do Distrito Federal no governo de Joaquim Roriz. Foi uma boa decisão entrar na política?
Se Brasília hoje tem o Centro de Convenções Ulysses Guimarães, foi porque ela convenceu o Roriz a reformar. Roriz dizia que turista não dá voto, o que está correto, mas ela ameaçou cortar os cabelos na Praça dos Três Poderes se ele não levasse adiante o projeto.
Por falar em Distrito Federal, o senhor viu Brasília nascer, trabalhava com Juscelino Kubitschek à época da construção. Foi um acerto trocar a Capital de lugar?
Cheguei aqui quando era tudo um carrascal, dava medo (risos). Não tinha onde comprar uma pasta de dente melhorzinha. A troca de cidade foi fantástica, só mesmo um homem com a coragem do presidente Juscelino seria capaz de fazer isso. O deslocamento incorporou vários Estados que estavam distantes, e que hoje estão a menos de duas horas de voo da Capital.
Presente de JK: no escritório em Brasília, embaixador guarda foto com dedicatória que ganhou de Juscelino Kubitscheck
E por que o senhor, que é mineiro, fixou residência em Brasília?
Tenho uma casa muito confortável, de modo que tenho tudo de que preciso. Demorei para trabalhar no Exterior. Sentia muita falta do Brasil, desde o feijão tropeiro à goiabada com queijo. Lá em Washington, tínhamos um chef francês, da melhor qualidade, que ficava louco por ver a gente comer goiabada com queijo.
Aos 81 anos, após enfrentar um AVC, como está a saúde?
Passei dos 80, o que considero uma vitória, porque, na família do meu pai, ninguém chegou aos 70. Além do mais, nunca pensei que fosse ter um derrame cerebral, pensava que teria algum problema cardíaco, porque todos os familiares morreram do coração. Aprendi a ser tolerante e a ter mais paciência. Estou muito bem, apesar do problema de saúde. A dificuldade de locomoção é o de menos, a cabeça funciona muito bem.
Ficou alguma recordação do derrame?
É um raio em céu azul. Estava bem de saúde, tinha 62 anos, era jovem. Você pensa em tudo, menos que vai ter um derrame. Você já cai semiparalisado. E, depois, toca fisioterapia. Tive de aprender a andar de novo. Rezei muito, sou devoto de Nossa Senhora de Lourdes.
Como foi encarar a recuperação?
Posso dizer que enfrentei bem o derrame. Depois, ainda continuei atuando como embaixador em Washington e depois em Roma. Lembro quando fui apresentar credenciais ao presidente Carlo Ciampi, na Itália, andando todo troncho, mas tive êxito na missão. Não costumo me queixar. O derrame foi uma lição de vida.
Que lição é essa?
Aprendi que a pessoa tem de reagir, que não pode se conformar com o traumatismo. Graças a Deus, tive sorte, pois hoje consigo conversar com você naturalmente. Ando com dificuldade e preciso usar cadeira de rodas por causa da pressão arterial. Fica menos cansativo. E a minha rotina hoje é voltada a muita fisioterapia, o que me enlouquece, mas é importante.
Manter a vida profissional auxilia na recuperação?
Sou um advogado que atua em tribunais superiores. Montei um escritório que me dá uma chance de trabalhar, sem ficar ouvindo o ruído da enceradeira em casa. O que mais me afligia era isso, ficar em casa ouvindo ruído de enceradeira e a empregada dizendo "doutô, tá faltando gás". O escritório é muito benéfico para mim.