Ladeira abaixo, numa estradinha de chão batido na pequena localidade de Argenta, zona rural de Erechim, uma placa avisa: ponte interditada a 300 metros. Há 10 anos, nenhum veículo passa pelo pontilhão sobre a barragem da Corsan onde 16 estudantes e uma monitora morreram afogados depois que o ônibus que os levaria para mais um dia de aula tombou e afundou.
Outros 15 passageiros e o motorista conseguiram se salvar. Nas comunidades conhecidas como km 7 e km 10, nas quais os estudantes que tomavam a rota 31 para ir à escola cresceram - e morreram - juntos, o olhar distante de cada pai ou mãe que perdeu um filho na tragédia revela que uma década é pouco para aliviar o sofrimento. Tampouco foi tempo suficiente para punir os culpados, mas pode ser o bastante para que o processo prescreva sem que ninguém seja condenado.
Enquanto a perda e o trauma agoniam familiares de vítimas e sobreviventes, Ministério Público (MP) e Justiça discutem se os réus - o motorista do ônibus, Juliano Moisés dos Santos, e os empresários responsáveis pelo transporte, Carlos Demoliner e Ernani Dassi - devem responder por homicídio doloso (com intenção ou risco assumido de matar) ou culposo (não intencional). No caso de dolo, os réus seriam levados a júri e estariam sujeitos a penas de até 30 anos de prisão. As penas para homicídio culposo de trânsito caem para dois a quatro anos de reclusão e são fixadas por um juiz singular.
Caso está desde maio na mesa de ministro do STF
O caso foi parar no Supremo Tribunal Federal (STF). Está desde maio na mesa do ministro Luís Roberto Barroso. A assessoria de gabinete do ministro adiantou à reportagem que ele deve se manifestar nesta semana.
Como o entendimento pelo homicídio culposo vem sendo mantido, a possibilidade de reversão em última instância é remota. Assim, se o processo retornar para a Comarca de Erechim como homicídio culposo e o juiz fixar a pena no mínimo, seguindo a prática usual, o crime já estará prescrito. Pelo atual Código Penal brasileiro, se a condenação for igual a um ano e não superior a dois, o crime prescreve em quatro anos.
Para a coordenadora da Procuradoria de Recursos do MP, Ana Luiza Lartigau, como o motorista estava em atividade profissional no ato do acidente, há possibilidade de a pena base ficar acima do mínimo, o que evitaria a prescrição.
O marco jurídico no caso da tragédia de Erechim é o recebimento da denúncia: 30 de dezembro de 2009.
- O atual sistema de prescrição incentiva a impunidade, tanto que foram propostas modificações no novo Código Penal. Num país sério, jamais estaria prescrito este caso - comenta Douglas Fischer, coordenador da Assessoria Jurídica Criminal do Procurador-Geral da República junto ao STF, e um dos auxiliares do senador Pedro Taques (PDT-MT) para a reforma do Código Penal, ainda em tramitação.
Um processo indenizatório, encerrado em 2011, de cerca de R$ 13 milhões, pagos pela Corsan, permitiu a algumas famílias mudar de endereço, em melhores condições, mais longe das inevitáveis lembranças cotidianas.
- Mas não houve justiça. Os verdadeiros culpados não foram punidos - lamenta Dirceu Pertili, que perdeu dois filhos na tragédia.
O acidente e o caminho do processo
2004
Em 22 de setembro, o ônibus que fazia o transporte de estudantes da localidade de Argenta para escolas de Erechim caiu na barragem da Corsan matando 17 pessoas e ferindo 16.
A perícia concluiu que houve falhas na manutenção do ônibus, que as condições da estrada eram ruins e que o motorista estava em velocidade acima do permitido.
O Ministério Público denunciou o motorista Juliano Moisés dos Santos e os empresários Carlos José Demoliner e Ernani Davi Rodrigo Dassi por homicídio doloso e tentativa de homicídio dos sobreviventes.
Familiares de vítimas e sobreviventes ingressaram com processo indenizatório contra a Corsan, a prefeitura de Erechim, o motorista e os empresários.
2009
A Justiça de Erechim aceitou a denúncia do MP e pronunciou os réus, que iriam a júri popular por homicídio doloso qualificado.
2010
Os réus entraram com recurso para que o caso fosse julgado como homicídio culposo de trânsito e lesão corporal, com penas mais brandas e não sujeito a júri popular.
Os recursos foram aceitos pelo Tribunal de Justiça do RS. O MP recorreu ao Superior Tribunal de Justiça.
2011
O processo indenizatório foi encerrado na Justiça, totalizando cerca de R$ 13 milhões, pagos pela Corsan, referentes a indenizações por dano moral para cada família que perdeu um filho, pensão pelos anos até o período em que as crianças atingiriam a maioridade, indenização para cada sobrevivente do acidente e para seus pais.
2013
O STJ manteve o entendimento do TJ-RS de que o crime deve ser enquadrado como homicídio culposo de trânsito. O MP recorreu ao Supremo Tribunal Federal para reverter a decisão, mas a promoção do recurso foi negada pelo TJ-RS.
2014
O MP ingressou com agravo para forçar a subida do recurso ao STF. Se mantida a tipificação para homicídio culposo, o processo volta para a Comarca de Erechim para decisão do juiz. Caso a pena seja mínima, o crime já terá prescrito. Se a pena for maior, o processo segue o trâmite normal, cabendo recurso da defesa para rever as condenações. Se o STF decidir por acolher o recurso do MP e revalorar o crime para homicídio doloso, a denúncia será restabelecida e os réus serão levados a júri.
Eles perderam a vida
Adriane Andréia dos Santos, 15 anos
Bruna Sandra Guareschi, 15 anos
Cristian Diego Modzinski, 12 anos
Daniela Paula Smolinski, 14 anos
Elisangela Guareschi, 16 anos
Fernanda Paula Bortoli, 13 anos
Gleidis Sobis, 15 anos
Iago Eleotério Franceschi, 12 anos
Julio Antônio Pertili, 16 anos
Leia Bandeira Trindade, 12 anos
Lucas Vezzaro, 14 anos
Márcio Miguel Dubil, 14 anos
Patrícia Maria Gewinski, 13 anos
Rubens Gelinski, 15 anos
Tainara Roberta dos Santos, 16 anos
Tânia Fátima Dambrós, 22 anos
Tatiane Fátima Pertili, 12 anos
Logo após a tragédia, a fundação Vida Urgente colocou uma placa com os nomes das 17 vítimas na cabeceira da ponte onde ocorreu o acidente, mas muitos nomes já estão apagados.
Uma missa será celebrada nesta segunda-feira na capela da comunidade do km 7 às 19h30min. A cada ano, as comunidades se alternam para sediar a cerimônia.
A Câmara de Vereadores de Erechim aprovou a sugestão de construir um monumento em memória das vítimas da tragédia de 2004 em alguma praça da cidade. A licitação está prevista para janeiro de 2015. Ainda não há arte e modelo definido, ficando a criação a cargo dos artistas que se inscreverem no edital. Também não foi escolhida a praça para a colocação do memorial.
Contrapontos
Ernani Davi Rodrigo Dassi
Empresário responsável pelo transporte
"Fui linchado moralmente. E não me sinto culpado de nada. Eu não sou mecânico. Se alguém executou a manutenção com falhas, quem tem que responder é quem fez. Ademais, o veículo nem chegou a ser transferido, o motorista não tinha vínculo com a minha empresa e os pagamentos eram feitos para a Transportes Demoliner. Então, não tenho nenhuma responsabilidade sobre a manutenção. Sinto que fui tirado como bode expiatório. Eu me considero mais vítima do que acusado."
Carlos José Demoliner
O advogado Alexandre Lyrio falou em nome do empresário responsável pelo transporte
"Como houve a venda do ônibus e a transferência da linha para a Transportes Dassi, a Demoliner não teria responsabilidade direta no evento, a manutenção não era mais a cargo dele, o motorista era funcionário do Dassi. O Tribunal tem defendido que a responsabilidade estaria no polo passivo, uma vez que essa transferência teria sido feita de forma irregular, já que era uma licitação pública, mas na esfera penal não vai se julgar se houve uma sublocação ou venda irregular. São situações distintas e, ao mesmo tempo, correlatas."
Prefeitura de Erechim
O município respondeu por meio da assessoria de imprensa
"A prefeitura de Erechim esclarece que o trecho em que houve o acidente não é de sua responsabilidade e, inclusive, não fazia parte do itinerário original. A passagem pelo local foi opção da empresa de transportes. O trecho é de responsabilidade da Corsan. A prefeitura de Erechim tomou todas as providências de rescisão de contrato e afastamento de vínculos dos envolvidos com o poder público."
Corsan
O superintendente jurídico da companhia, Ciro Gaertner, respondeu por e-mail
"A Corsan promoveu o ajuizamento de quatro ações de regresso contra os outros devedores solidários. O processo contra Juliano Moisés dos Santos está suspenso enquanto se diligencia na busca de bens em nome do devedor. Certamente ele não tem patrimônio suficiente para o pagamento, sendo que, mais adiante, teremos que redirecionar essa cobrança contra os demais devedores. A decisão judicial impingiu responsabilidade à Corsan por ter construído a estrada e não ter exigido a manutenção e sinalização por parte do município."
Motorista do ônibus vive um autoexílio
O motorista Juliano Moisés dos Santos tenta viver à margem da tragédia que matou 16 crianças e uma monitora na barragem da Corsan, em Erechim. Após o acidente, preferiu o autoexílio, com quem desconhecia sua história de vida. Há pelo menos seis anos Juliano não é localizado pela Justiça para responder a processos de indenização movidos contra ele. Em uma ação, foi condenado à revelia, e a Companhia Riograndense de Saneamento (Corsan) - também ré - acabou pagando a conta sozinha. A Corsan até que tentou cobrar-lhe, mas o processo foi suspenso porque não foram localizados bens do motorista que pudessem ser penhoráveis.
Até o ano passado, Juliano morou em Getúlio Vargas, município onde nasceu há 34 anos, e onde vive parte de sua família, distante 35 quilômetros de Erechim.
Parentes e amigos evitam falar sobre os passos de Juliano, mas ele retomou o trabalho como caminhoneiro, casou-se duas vezes e teve dois filhos. Em 2004, quando foi entrevistado por ZH, duas semanas depois do acidente, disse estar traumatizado e com medo de água "até para lavar o rosto".
Em 2008, enfrentou chamas iniciadas em um fogão que destruíram parte da cozinha da casa onde morava, em Getúlio Vargas. Em janeiro de 2013, dirigindo um caminhão, colidiu com um motociclista, sem maiores danos, em Passo Fundo.
Em meados de março passado, alugou uma quitinete em Getúlio Vargas, e voltou a ser vítima de um incêndio, dessa vez, mais violento. Em uma madrugada de maio, labaredas consumiram a casa dele e outras quatro moradias contíguas, habitadas por estudantes. Juliano tinha passado a noite fora e não se feriu, assim como os demais vizinhos. Mas perdeu móveis, roupas, documentos e um Opala ano 1983.
Dias depois, renovou a carteira de motorista categoria D - transporte de passageiros - e, desde então, não tem sido visto em Getúlio Vargas. Juliano é habilitado desde 2000, e durante esses 14 anos, nunca teria deixado de dirigir - por não ter sido condenado por crime de trânsito, não há restrição legal. Ficou sem dirigir entre setembro e dezembro de 2005, por restrição do Instituto Nacional do Seguro Social - possivelmente afastado temporariamente do trabalho por alguma doença.
Em sua página do Facebook, Juliano se identifica por um apelido. Apresentase como motorista, morador de Getúlio Vargas. Mas a segunda mulher dele, pela mesma rede social, informa que vive em Passo Fundo. Zero Hora ligou para Juliano e a mulher dele. Os dois evitaram falar com a reportagem.
- Não tenho nada a declarar - afirmou Juliano, desligando o telefone.
*Colaborou José Luís Costa