Uma vista privilegiada do Guaíba vem do quarto-sala do pedreiro Ricardo Luz de Souza, 36 anos, no sexto andar de um prédio que passou por quatro ocupações na última década e hoje serve de abrigo para famílias do Movimento Nacional de Luta pela Moradia, a ocupação Saraí.
Localizado na esquina da Rua Caldas Junior com a Avenida Mauá, no Centro da Capital, o imóvel foi declarado pelo Estado como bem de interesse social na semana retrasada, o que dá início ao processo de desapropriação. Quinze famílias ainda vivem no edifício desde a última invasão, em agosto do ano passado, mas todas terão que sair para a futura reforma do imóvel - o prazo para a mudança ainda não foi estipulado.
Entre elas, está a de Ricardo. Ele vive com a esposa, dois filhos e quatro enteados em uma peça com divisórias de tapumes. Há apenas uma cama para o casal, e os demais dormem em colchões espalhados no chão.
Mesmo com a infraestrutura limitada do lar, o pedreiro faz elogios ao lugar:
- Aqui é ótimo, pena que precisamos sair. Se fico triste, venho para a janela e melhoro.
Para o técnico em informática João Ribeiro, 41 anos, o edifício Saraí é um local seguro para viver com a esposa e os dois filhos. Tudo que a família tem está apertado em um espaço de poucos metros quadrados. Ali, adaptaram as janelas, colocaram varal de roupa e puxaram fios elétricos para a televisão, geladeira e notebook. Ele já começou a procurar uma casa para alugar, mas deixa claro que quer voltar quando a reforma do prédio for concluída.
O prédio está localizado na esquina da Rua Caldas Junior com a Avenida Mauá
Foto: Marcelo Oliveira/Agência RBS
O melhor lugar no qual Cristiane já morou
A família de Cristiane Beatriz Rosa dos Santos, 41 anos, mora no quinto andar e não desfruta da mesma vista, mas garante que se sente acolhida no lugar. Depois de sair de uma área irregular atrás do Shopping Iguatemi, a dona de casa diz de boca cheia que este é o melhor lugar que já morou.
- O importante é não ficar na rua - diz ela, que mora com cinco filhos e o companheiro, o desempregado Lauro da Paz Toledo, 54 anos.
Ela já está empacotando os pertences para deixar o prédio. De móveis, tem apenas um armário de cozinha, outro armário com portas quebradas no quarto, colchões e uma televisão pequena. Há piso bruto no chão, mas faixas de carpete protegem do frio.
Cristiane acredita que não será simples em alugar um imóvel para a família.
- Quando eu digo que tenho cinco filhos, começa a dificuldade - lamenta.
Organização e regras
A estética externa do prédio não passa uma boa impressão. Dentro, no entanto, as paredes inteiras revelam que o imóvel não tem problemas estruturais. Todo cenário interno lembra um prédio que foi construído para uso comercial, mas que ficou sem conservação ao longo dos anos. A escada em espiral é estreita e escura. Não há divisórias nos andares, a não ser as provisórias colocadas pelo próprios moradores. O forro está deteriorado e a maior parte das paredes, pichada.
A partir do terceiro pavimento, cada andar é ocupado por três ou quatro famílias. O segundo é um espaço coletivo com cozinha, dois banheiros com chuveiro, pias e privadas. Também há um espaço reservado para as crianças brincarem e para as reuniões do movimento.
O fornecimento de água e luz é irregular. A energia é precária, e a água só sobe até o segundo andar. Com isso, todos precisam descer até ele para lavar louça e tomar banho. Os moradores garantem que a higiene pessoal e as atividades domésticas de cada um não geram filas e tumultos.
As rotinas de cada família seguem horários distintos - explica a líder do Movimento Nacional de Luta pela Moradia em Porto Alegre, Ceniriani Vargas da Silva.
Segundo ela, as regras de convivência são claras: cigarros apenas no segundo andar, consumo de bebida alcoólica só nos finais de semana e também no segundo andar. Depois das 20h, os menores de 18 anos não podem mais sair.
Há uma única chave para todos utilizarem e fica sempre dentro do prédio. Os moradores se revezam como "porteiros" do imóvel para controlar a circulação de pessoas e evitar a entrada de estranhos.
Não há garantias
Todos os moradores do edifício Saraí serão encaminhados para o aluguel social pela Prefeitura de Porto Alegre. Mas a situação das famílias ainda é incerta. O secretário estadual de Habitação e Saneamento, Marcel Frison, explica que o decreto assinado pelo Estado é o primeiro passo para dar início ao trâmite da desapropriação do imóvel, que pode ser ágil ou levar anos para se consumar, dependendo de qual será o comportamento dos proprietários.
Ele ressalta que não há garantia de que as famílias que vivem no Saraí serão as que passarão a residir no prédio depois da reforma. Segundo ele, um dos critérios é priorizar as famílias mais necessitadas. Outro, ainda a ser avaliado, é dar preferência aquelas que têm filhos estudando em escolas próximas ao edifício.
- A ideia é juntar as necessidades das pessoas que estão sob responsabilidade do Estado e contemplar as soluções - avalia Marcel.
Prédio já foi alvo do PCC
- O prédio foi construído há décadas com recursos do Banco Nacional de Habitação, para ser destinado à moradia social para abrigar entre 40 e 50 famílias.
- No entanto, acabou repassado à Caixa Econômica Federal e operou como prédio comercial até ser esvaziado, há mais de 20 anos.
- O imóvel passou por quatro ocupações na última década e atualmente abriga famílias do Movimento Nacional de Luta pela Moradia.
- Em setembro de 2006, chegou a ser utilizado pelo crime organizado do Primeiro Comando da Capital (PCC) para cavar um túnel na tentativa de assaltar o Banrisul e a Caixa Econômica Federal.
- Desde maio deste ano, uma mobilização em favor da ocupação social do prédio ganhou força nas redes sociais.