O ponto de partida de Ela sugere uma comédia maluca: homem solitário apaixona-se pela voz de um programa de computador. Nas mãos do diretor e roteirista Spike Jonze, porém, essa sinopse é a introdução de um melancólico e agridoce retrato da condição humana no mundo 2.0.
O longa que estreia nesta sexta-feira concorre a cinco Oscar, inclusive o de melhor filme. Ao lado do roteirista Charlie Kaufman, o diretor é o responsável por produções brilhantes como Quero Ser John Malkovich (1999) e Adaptação (2002). À maneira dessas tramas, Ela envereda pelo inusitado e pelo nonsense, conduzindo o espectador por um ambiente um tanto surreal. Diferentemente dos roteiros fabulosos do genial Kaufman, no entanto, o longa de Jonze acena com o tom fantasioso apenas para ganhar perspectiva, a fim de melhor armar o cenário dos impasses existenciais contemporâneos.
Em um futuro próximo, Ela acompanha o cotidiano de Theodore (Joaquin Phoenix), pacato funcionário de uma empresa especializada em escrever cartas personalizadas para seus clientes. Cercado por dispositivos tecnológicos que mantêm todos conectados, o discreto redator decide adquirir um novo sistema operacional de computador, que promete adaptar-se às características e aos interesses do usuário, evoluindo à medida que vai recebendo mais informações.
O software, entretanto, supera expectativas: batizado de Samantha, o programa emula com crescente perfeição as reações emocionais e os sentimentos humanos, tornando-se um interlocutor espirituoso. Logo, a amizade cibernética vira namoro, ainda que a amante de Theodore seja apenas uma fala. Mas não qualquer uma, justiça seja feita: quem empresta sua voz rouca e quente para Samantha é a atriz Scarlett Johansson.
O idílio com essa "mulher perfeita" é colocado em xeque quando Theodore depara com as questões e demandas da realidade palpável: as lembranças cálidas de seu casamento desfeito, a hesitação em assinar os papéis do divórcio com Catherine (Rooney Mara), o relacionamento com a amiga de carne e osso Amy (Amy Adams). Mais: essa companheira sem corpo conseguirá manter-se imune às fraquezas e aos dilemas humanos enquanto vai adquirindo mais autoconsciência?
Ela é descolado: as reminiscências do passado enchem a tela como fotos de Instagram; o protagonista é sensível, tímido, bem-humorado e atrapalhado - e de bigode -; a trilha sonora é da banda Arcade Fire; a música-tema é cantada por Karen O, vocalista do grupo Yeah Yeah Yeahs, acompanhada por ukulele. O filme, todavia, é muito mais do que um mero videoclipe hipster. Intrigando mais do que esclarecendo, Ela divide com o espectador a perplexidade diante do admirável mundo novo virtual que já está aí fora. Um enigma de mão dupla sintetizado no título original, que a tradução em português não conseguiu reproduzir. Dependendo do contexto, Her, em inglês, pode significar tanto "ela" quanto "dela", indicando a condição ambivalente de Theodore - ao mesmo tempo sujeito e objeto de sua própria vida.