Marcado por palavras de ordem pichadas em protesto contra a ditadura, o portão da garagem do casarão amarelo no número 600 da Rua Santo Antônio, em Porto Alegre, foi aberto para a passagem de militantes de esquerda e dos direitos humanos na tarde desta quarta-feira.
Os primeiros passos levaram a um corredor estreito e lúgubre, de paredes brancas descascadas e rachadas. À esquerda, duas portinholas, uma delas já concretada, que encaminhavam ao porão em que opositores ao regime militar foram presos e torturados na década de 1960. Ocupado simbolicamente com a permissão dos proprietários, o Dopinha, que foi um centro clandestino de repressão, teve um dia de cultura e resgate da memória.
A atividade, comandada pelo Comitê Carlos de Ré da Verdade e da Justiça, tinha o objetivo de garantir a desapropriação e indenização aos proprietários do casarão, que está fechado há anos, para a transformação do espaço no Centro de Memória Ico Lisboa. Presentes ao ato, o governador Tarso Genro e o prefeito José Fortunati confirmaram a disposição em dividir o custo do imóvel, avaliado em cerca de R$ 2 milhões.
Os militantes comemoraram a possibilidade de "ressignificação" do local, fazendo do prédio que já foi um centro de tortura um espaço de convivência, memória e cultura.
Tarso afirmou que o Estado pagará a sua parte em dinheiro, com autorização da Assembleia Legislativa. Fortunati, que precisará resolver trâmites burocráticos, como a publicação do decreto de desapropriação, irá oferecer aos proprietários do casarão compensações em "índice construtivo", que dá direito ao seu portador de exceder os limites legais de uma construção em determinada área.
Na última fase, um convênio com a Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República irá garantir recursos para reformar, mobiliar e abrir o espaço ao público.
Como os trâmites ainda são muitos, poucos se arriscam a arriscar uma data para inaugurar o Centro de Memória Ico Lisboa, militante morto em 1972 e que será homenageado ao emprestar o seu nome ao local. Ele foi o primeiro desaparecido político a ter o corpo encontrado.
Diversas autoridades compareceram, como o ex-governador Olívio Dutra, o secretário da Segurança, Airton Michels, o procurador-geral do Estado, Carlos Henrique Kaipper, a ex-deputada Luciana Genro (PSOL), a vereadora Fernanda Melchionna (PSOL) e parlamentares como Adão Villaverde, Daniel Bordignon e Jeferson Fernandes, os três últimos do PT. Também estiveram presente militantes do PSOL, PSTU, PT, PCB, PC do B e PDT.
Houve espaço para a cultura. Intercalando com discursos, Nei Lisboa - irmão de Ico - e Raul Ellwanger tocaram canções que simbolizam a resistência e a busca por esclarecimentos.
No desenrolar da solenidade, nos fundos do casarão, onde há um quintal e uma garagem, também surgiram debates sobre a Lei da Anistia e o julgamento dos agentes da ditadura. Um dos coordenadores do Comitê Carlos de Ré da Verdade e da Justiça, o vereador Pedro Ruas (PSOL) defendeu a aplicação de penas aos militares.
- A tortura e a morte são crimes imprescritíveis. O Brasil assinou tratados internacionais que garantem isso. A Lei da Anistia não pode ser superior a esses acordos - afirmou Ruas.
Tarso disse que não se trata de rever a Lei da Anistia, mas sim de modificar a interpretação.
- Eu, na verdade, nunca defendi a revisão da Lei da Anistia. Isso seria impossível do ponto de vista jurídico. Até porque ela também atingiu as pessoas que tiveram seus direitos lesados pela ditadura. Existe a interpretação de que a lei anistiou os torturadores. O que eu defendo é que ela não pode ser aplicada para não permitir a punição daqueles que torturaram e assassinaram. Isso não é crime político. Isso é delito comum ou delito de lesa-humanidade. Portanto, não pode estar abrigado na Lei da Anistia - disse Tarso.
Fortunati classificou o ato como "histórico" e chamou de heróis aqueles que resistiram à ditadura, mas defendeu que não se olhe para o passado "para buscar vingança".
O músico Raul Ellwanger entende que é preciso ampliar o debate com a sociedade sobre os crimes da ditadura e possíveis punições.
- Evidente que ainda é um movimento que não tem grande apoio na sociedade, até porque houve um trabalho para que não existisse esse apoio. Foi omitido, não se conta a história, não se fizeram filmes, não se mudou o currículo militar e das escolas. Houve um processo de esquecimento. Mas a gente pensa também nos dias de hoje. Basta de tortura ontem e hoje. O caso Amarildo é emblemático - disse Ellwanger, ressaltando que a ideia é fazer do Centro de Memória Ico Lisboa um lugar de atividade cultural intensa, não apenas um museu para visitação esporádica.