O papa Francisco se despediu na noite deste domingo do Brasil após celebrar uma missa para mais de 3 milhões de pessoas nas areias de Copacabana e protagonizar, durante uma semana histórica, o maior evento que o país já sediou.
O público que se reuniu pela manhã na missa de encerramento da Jornada Mundial da Juventude espremia-se desde a beira do mar, onde era encontrado pelas ondas, até a linha dos prédios, no outro lado da Avenida Atlântica, em uma extensão de quase quatro quilômetros. O Ministério do Turismo estimou em 2 milhões os turistas que desembarcaram no Rio, mais de três vezes o esperado para a Copa de 2014.
- Neste momento, parto com a alma cheia de recordações felizes. Neste momento, já começo a sentir saudade. Saudade do Brasil, deste povo tão grande e de grande coração. Saudade deste povo tão amoroso - disse o Papa em seu discurso de despedida, na Base Aérea do Galeão, minutos antes de embarcar para Roma.
A celebração da manhã foi o ápice de quatro eventos na praia. Na quinta-feira, Francisco atraiu cerca de 700 mil pessoas à areia. No dia seguinte, 1,5 milhão. O número chegou a 3 milhões no sábado - equivalente a duas vezes a população de Porto Alegre - a ultrapassou neste domingo. É como se Copacabana tivesse abrigado quatro festas de Réveillon consecutivas.
Além da multidão que se estendia como um tapete sobre a areia e o asfalto, fiéis do mundo inteiro brotavam em cima de telhados, árvores e caixas d'água para acompanhar a última missa do Papa na Jornada. A movimentação havia começado ainda na manhã de sábado, quando jovens de 175 países iniciaram a peregrinação até Copacabana, para a vigília da noite. Eles passariam a madrugada em milhares de barracas, cangas e sacos de dormir na praia.
Quando amanheceu, mal havia espaço para se mexer. Muita gente não enxergava sequer os telões espalhados ao longo da orla. Em plena Avenida Atlântica, fiéis recém-acordados espreguiçavam-se, colocavam desodorante, escovavam os dentes. A mongol Geretee (na Mongólia não se usam sobrenomes) estava embasbacada com a quantidade de companheiros de fé. A jovem de 26 anos contou que a Igreja Católica chegou a seu país há apenas duas décadas e conquistou, até agora, apenas 900 fiéis.
- Sou a única católica da minha família. É incrível estar no meio de tanta gente da Igreja, que sabe como louvar a Deus - disse.
Sol e mar no último dia de missa na praia
O papa Francisco surgiu pouco depois das 9h, cruzando Copacabana em carro aberto - que não ocorria havia mais de 30 anos fora de Roma. A paulista Letícia de Oliveira Silva, 17 anos, subiu em um caminhão de lixo para gritar e entrar no clima de informalidade do ilustre visitante:
- Chiquinho! Chiquinho! Chiquinho!
O Papa abriu a missa às 10h, sob sol forte de Copacabana. Era o primeiro momento sem frio e chuva desde o início do evento. Milhares de jovens não resistiram e caíram na água. Quem não estava de bermuda mergulhou de cueca. Algumas garotas compraram biquínis e trocaram-se envoltas na bandeira de seu país. A chilena Francisca Larrondo, 15 anos, contorceu-se dentro do saco de dormir para vestir o maiô. Depois, correu para um mergulho. Mais precavida, Lara Santarosa, 17 anos, moradora de Limeira (SP), dormiu com o biquíni sob a roupa.
- Não dá para vir ao Rio e não aproveitar a praia - ponderou.
A comoção se acentuava com o clima de despedida, que motivava reflexões.
- Foi uma grande troca cultural - disse o gaúcho Átila Paiva, 27 anos, de Camaquã.
Outros peregrinos faziam avaliações menos favoráveis, devido a problemas de organização que lançaram dúvidas sobre a capacidade do Rio de receber a Copa e a Olimpíada.
- Fui hospedado em uma cidade a duas horas e meia do Rio, enfrentei fila de quatro horas para pegar o kit de alimentação. E ontem (sábado) ainda teve um protesto de gays e lésbicas - relatou o dominicano Edgar Sanlana, 23 anos.
O Papa anunciou que a próxima Jornada será em Cracóvia, na Polônia, onde João Paulo II era arcebispo quando foi eleito Pontífice. Especula-se que sua canonização ocorra no evento. Os poloneses em Copacabana comemoraram e prometeram braços abertos aos visitantes em 2016.
Simplicidade para revolucionar a Igreja
O Papa fez um discurso duro na tarde deste domingo, em encontro com o episcopado latino-americano. Criticou o estilo principesco de alguns bispos e, fugindo do texto escrito, desabafou ao condenar a falta de oportunidade para participação dos leigos em conselhos de paróquias e dioceses.
- Estamos muito atrasados nisso. Em Buenos Aires, menos da metade das paróquias tem conselhos. Joder! (em tradução livre do espanhol, algo como "é fogo!") - disse o Pontífice na residência do Sumaré, onde estava hospedado no Rio.
Francisco voltou a pregar uma Igreja mais pobre e humilde, orientando padres e bispos a atuarem nas periferias.
- Os bispos devem ser pastores, próximos das pessoas. Homens que amem a pobreza, seja a pobreza interior como liberdade diante do Senhor, seja a pobreza exterior como simplicidade e austeridade de vida. Homens que não tenham psicologia de príncipes. Que não sejam ambiciosos.
Sob o calor carioca, religiosas mantiveram o hábito, mas refrescaram os pés na água
Foto: Yasuyoshi Chiba/AFP
A visita do Papa ao Brasil foi cheia de simbolismos: esteve em uma favela, conversou com dependentes químicos, exigiu um carro simples e manteve contato físico com a população. No sábado à noite, fez outro discurso incisivo na praia de Copacabana. "Não sejam covardes", "saiam às ruas" e "envolvam-se num mundo melhor" foram apelos de Francisco para 3 milhões de pessoas que acompanhavam a missa da vigília. Foi a primeira vez que o Pontífice mencionou diretamente os protestos dos últimos meses:
- Por favor, não deixem que outros sejam protagonistas. Sejam vocês. Vocês têm o futuro nas mãos. Peço que vocês sejam protagonistas, superando a apatia e oferecendo uma resposta cristã às inquietações sociais e políticas que se impõem em diversas questões do mundo.
Durante a vigília, um mar de fiéis de 175 países com barracas e sacos de dormir, lotou a praia
Foto: Mauro Vieira/Agência RBS
O fascínio causado por Francisco no primeiro compromisso internacional de seu papado deve ter uma repercussão consistente e duradoura para a Igreja Católica. Religiosos acreditam que a mensagem de humildade do argentino Jorge Mario Bergoglio, sua afetiva e informal interação com as multidões e o gigantismo do evento no Rio terão um profundo impacto entre a população. Luís Inácio Ledur, pároco da Igreja Nossa Senhora da Conceição, em Porto Alegre, afirma que o Pontífice está iniciando uma revolução. O sucesso da Jornada, segundo Ledur, tende a fortalecer a fé de católicos praticantes e conquistar novos seguidores.
- Acho que vai reforçar os que já estão nas nossas fileiras, trazer de volta os que estavam se afastando e conquistar muitos que não estavam ligados à Igreja - prevê o padre, participante da JMJ.
Na segunda missa de ontem, às 10h, Egon Binsfeld notou um público reduzido na Igreja Sagrada Família, na Capital. Compreendeu que muitos fiéis faltaram para poder assistir à transmissão da Missa de Envio, em Copacabana. O padre optou, então, por um formato compacto para a celebração e, às 10h40min, cerca de 15 minutos mais cedo do que o habitual, orientou os presentes a correr para casa e ligar a televisão. Binsfeld, que esteve em Aparecida (SP) na quarta-feira para ver Francisco, sentiu no templo da Cidade Baixa a comoção resultante das atividades que reuniram milhões de pessoas.
- Todo mundo estava cativado pelo Papa, falando como ele é bom, humano. Ele fez uma pregação profunda, centrada em Cristo. Isso vai chamar muita gente - avalia o pároco, há 35 anos ligado ao movimento Encontro de Jovens com Cristo (EJC).
Papas e multidões
02/06/1979
Com sete meses de pontificado, Karol Wojtyla, o papa João Paulo II, é recepcionado por 1 milhão de compatriotas em Varsóvia, na Polônia.
1º/10/1979
João Paulo II reúne 500 mil pessoas no último sermão da visita à Irlanda.
1º/10/1979
O polonês é recebido por 3 milhões de fiéis em Boston, nos Estados Unidos.
05/07/1980
Em Porto Alegre, 300 mil pessoas acompanham a missa celebrada pelo Pontífice na rótula entre a Avenida Erico Verissimo e a Rua José de Alencar.
28/07/2002
Ao final da 17ª Jornada Mundial da Juventude, João Paulo II reza missa para 800 mil pessoas no Canadá.
21/08/2005
Bento XVI celebra missa para 1 milhão de peregrinos na Alemanha, seu país natal, no encerramento da 20ª Jornada Mundial da Juventude.
11/05/2007
Cerimônia de santificação de Frei Galvão, com Bento XVI, é acompanhada por mais de 1 milhão de pessoas em São Paulo.
Agosto de 2011
Na Jornada Mundial da Juventude de Madrid, Bento XVI reuniu 1,5 milhão de participantes.
Palavras do Pontífice
Jovens e evangelização
"Sabem qual é o melhor instrumento para evangelizar os jovens? Outro jovem! Este é o caminho a ser percorrido!"
Tragédia da boate Kiss
"Com a cruz, Jesus se une às famílias que choram a trágica perda de seus filhos."
Liberação do uso de drogas
"Não é deixando livre o uso das drogas, como se discute em várias partes da América Latina, que se conseguirá reduzir a difusão e a influência da dependência química."
Valorização dos idosos
"Como os avós são importantes na vida da família, para comunicar o patrimônio de humanidade e de fé que é essencial para qualquer sociedade! E como é importante o encontro e o diálogo entre as gerações, principalmente dentro da família."
Intolerância e corrupção
"Com a cruz, Jesus se une a quem é perseguido por sua religião, por suas ideias ou simplesmente pela cor de sua pele. Na cruz, Jesus está junto a tantos jovens que perderam sua confiança nas instituições políticas porque veem o egoísmo e a corrupção ou que perderam sua fé na Igreja, em Deus inclusive, pela incoerência dos cristãos e dos ministros do Evangelho."
Protestos no Brasil e no mundo
"Eu os animo a que, de forma ordenada, pacífica e responsável, motivados por valores do Evangelho, sigam superando a apatia e oferecendo uma resposta cristã às inquietudes sociais e políticas presentes em seus países."
Missão dos jovens após a JMJ
"A experiência desse encontro não pode ficar trancafiada na vida de vocês ou no pequeno grupo da paróquia, do movimento e da comunidade de vocês. Seria como cortar o oxigênio a uma chama que arde."
Na onda de Francisco
Jornada Mundial da Juventude consagra Papa como elo entre a Igreja e os fiéis
Evento na praia de Copacabana atraiu maior número de participantes já vistos no Brasil
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