Diziam que seu destino seria a cadeia ou a morte.
Que corria o risco de nem chegar aos 15 anos - já era uma surpresa ter completado 14.
Que não havia jeito, o crack tinha corroído suas chances de recuperação.
Contra todos os prognósticos, o guri que há um ano se transformou em símbolo de um fracasso coletivo ao ter sua peregrinação pelas esquinas estampada na reportagem Filho da Rua tateia desde então um novo caminho, pavimentado com olhares mais atentos da rede de assistência. Uma trilha inconstante, mas bem mais promissora do que os mais otimistas ousavam acreditar até 17 de junho do ano passado, quando a história do adolescente foi contada em 16 páginas de Zero Hora.
Nem a própria mãe acreditava que pudesse ser diferente, desesperançada com os nove anos de idas e vindas do filho entre a casa e as calçadas. Primeiro seduzido pelas esmolas, em seguida agarrado pelas drogas - num enredo comum a tantas crianças e adolescentes que perambulam pelas sombras de Porto Alegre ou de qualquer outra cidade do Brasil.
Depois de acompanhar Felipe por três anos e reunir mais de 300 páginas de documentos de sua história, a publicação diagnosticava o drama que nenhum programa social havia sido capaz de interromper: aos 14 anos, o adolescente já somava 105 encaminhamentos do Conselho Tutelar e continuava nas esquinas, havia sido matriculado em quatro escolas e seguia analfabeto, tinha estado internado sete vezes para tratar sua dependência química e permanecia usuário de crack. Parecia que as chances de reabilitação estavam esgotadas.
Um ano depois, ZH mostra como o improvável se tornou possível. Desde julho do ano passado, Felipe voltou a dormir em casa com regularidade - tornando as ausências uma exceção. No final de fevereiro deste ano, foi matriculado novamente na escola - apesar de ter metade das presenças esperadas, até o final de maio continuava vinculado. Cada dia é uma vitória, em meio a um cenário de risco permanente. Antes de aprender a ler e escrever, o adolescente inaugurou oficialmente seu currículo de infrator, com sua primeira passagem pela Fundação de Atendimento Socioeducativo (Fase) no ano passado - e atualmente cumpre em liberdade outra medida socioeducativa por desacato policial.
O caminho de volta para casa é instável, mas vem acompanhado de uma decisão crucial: Felipe não quer mais ser filho da rua.
- Agora sou filho de casa - brinca o adolescente, hoje com 15 anos.
* ZH acompanha a trajetória de Felipe desde março de 2009, com autorização do Juizado da Infância e da Juventude. Os nomes do adolescente e de sua família foram trocados para preservar a identidade, como determina o Estatuto da Criança e do Adolescente.
O medo de que Felipe reprisasse o antigo histórico na rua bateu à porta da mãe três semanas depois, em 4 de dezembro, quando recebeu a informação que deveria comparecer à Delegacia para Crianças e Adolescentes para buscá-lo.
Maria estranhou a notícia, porque o caçula havia começado naquela semana a trabalhar em Novo Hamburgo, com intermédio de vizinhos. Saía às 5h30min, pegava o trem e passava o dia preparando gesso para o teto de uma obra. Apesar de Felipe ter desistido do Pão dos Pobres, a mãe estava feliz porque ele continuava voltando para casa, demonstrava desejo de trabalhar. Mas aí veio aquela notícia, com ecos do passado.
Ao chegar à delegacia, Maria até se sentiu aliviada ao descobrir que a infração envolvendo o filho não era furto ou roubo, como das vezes anteriores. Felipe havia sido apreendido por desacato e resistência à abordagem policial, quando andava pela Praça Parobé, às 9h30min.
O adolescente tinha faltado ao trabalho e caminhava com uma amiga em direção ao trem quando viu a movimentação de policiais prendendo dois suspeitos de um assalto. Desconfiando de que Felipe pudesse ter algum envolvimento, os policiais tentaram revistá-lo. O adolescente resistiu e acabou levado para a delegacia.
Segundo documento remetido pelo Ministério Público ao Juizado da Infância, Felipe, "mediante grave ameaça", não aceitou a abordagem, "afirmando que iria sair na mão, proferindo, ainda ofensas e palavrões, chamando os policiais de merda e (dizendo) que sem farda não seriam nada".
Em audiência com o juiz Ângelo Furlan Pontes, Felipe negou que tivesse cometido qualquer irregularidade.
"Eu passei só olhando, daí eu não sei o que aconteceu, ele me chamou e daí eu fui, e daí ele me pegou pelo braço. Daí me levou para a delegacia. Daí eu comecei a me alterar porque eu não sabia o porquê de eles estarem me pegando", contou, garantindo ter levado um soco dos policiais.
Durante a audiência, o juiz tentou motivar Felipe a retomar os estudos:
- Que futuro tu vais ter assim?
- Pelo menos uma coisa ruim que eu fazia eu larguei - respondeu Felipe.
- O que é?
- Usar droga.
Ninguém tem certeza se ele recaiu no crack, mas o exame toxicológico indicou que no momento da apreensão ele estava sob efeito apenas de "substâncias psicotrópicas pesquisadas carbonoides" (11-nor-9-carbóxi-THC)", o equivalente a maconha.
Futuro ameaçado
No fim da audiência, o juiz fez Felipe se comprometer com a escola e cumprir oito semanas de prestação de serviços à comunidade - que seriam convertidos na realização de serviços gerais de limpeza, como varrer o pátio, no Centro de Referência de Assistência Social da região Nordeste.
- Me diz o seguinte... vamos começar o ano na escola? (...) Não vai querer ficar pra trás do pessoal da tua idade, todo mundo lendo e tu analfabeto... Vamos aproveitar que vai começar o ano de 2013 e vamos começar com o pé direito, não é?
- Sim, senhor - prometeu.
Antes que o ano novo chegasse com reenovadas promessas de superação, o acirramento dos conflitos familiares atestava que ter deixado de dormir na rua não significava viver em um ambiente protegido.
Dias depois do Natal, as desavenças entre Felipe e o padrasto ganharam contornos de tragédia. Maria nem sabe explicar o motivo da briga. Como um copo que transborda, as rusgas cotidianas entre os dois extravasaram em socos e pontapés. O padrasto nunca concordou com a maneira de Maria cuidar do filho. Acha que ela é superprotetora, cede a todas as vontades dele, passa a mão na cabeça. Felipe nunca se conformou com a separação dos pais, sempre resistiu à presença daquele homem no lugar do pai.
Naquela noite, a discussão começou quando Felipe já estava deitado, em um beliche colocado na sala. Pedro falava alto no quarto ao lado e Felipe o repreendeu:
- Eu quero dormir.
Pedro retrucou:
- Até parece que tu trabalha.
As provocações continuaram até que Pedro foi até a cozinha e voltou de lá com duas facas, ameaçando Felipe.
- Se tu é homem tu vem no braço comigo - reagiu o adolescente.
Pedro largou as facas, Felipe saltou da cama e os dois começaram a trocar socos na frente de casa. Depois da confusão, Maria expulsou Pedro de casa mais uma vez. Antes de ir embora, o padrasto jurou, em nome da sua neta de quatro anos, que iria voltar para matar o enteado:
- Tu vai chorar por mais um filho teu.
A ameaça dirigida a Maria ficou no ar, lançando mais uma incógnita sobre o futuro do adolescente.
Fronteira do destino
Quando Felipe tinha 11 anos, a então conselheira tutelar Lúcia Kümmel, que acompanhava suas andanças pela rua, havia feito um diagnóstico preocupante: "Nesse ritmo, ele pode não chegar aos 15 anos". A frase vinha carregada dos temores de quem viu tantos tombarem pelo crack. Pois, em 15 de fevereiro deste ano, Felipe alcançou um marco: cruzou a fronteira do destino. Não foi apenas mais uma virada de calendário. Foi a primeira vez em sete anos que passou o aniversário sem estar entorpecido.
Ter uma festa de 15 anos era um sonho de Felipe, que semanas antes começou a cobrar da mãe a comemoração.
- Ih, meu filho, festa de 15 anos é só pra menina - ria Maria, que tem economizado o salário como servente em um hospital da Zona Norte para ampliar a casa.
- Não importa, também quero - insistia.
Atrapalhado com os dias, chegou a cobrar antecipadamente os parabéns. Quando enfim o dia chegou, pulou da cama cedo, tomou banho e vestiu a melhor roupa. Uma camiseta do Barcelona, número 10 - que disse ter ganho de um amigo -, bermuda e tênis branco. Entusiasmado, chamou vizinhas para comer um bolo de aniversário oferecido pela repórter. Na hora dos parabéns, se emocionou ao soprar as velinhas que marcavam a nova idade.
Ao ouvir que podia fazer um pedido, o fez em silêncio. Diante das velas apagadas, abraçou a mãe e começou a chorar. Não precisou dizer nada. Naquele abraço cabiam todos os aniversários em que Felipe esteve ausente, vagando em destino ignorado. E todo o desejo de que os próximos possam ser diferentes.
Meses antes, quando a mãe falava sobre toda a angústia que passou quando ele vivia na rua, Felipe respondeu:
- Nem me fala dessas coisas que eu já esqueci.
- É bom que tu esqueça para o resto da vida - aconselhou Maria.
Felipe sabe que não tem como esquecer. Ciente da repercussão de sua história, torce para que ela não seja em vão.
- Todo mundo já sabe de mim. O Brasil inteiro sabe de toda minha vida, até pra outros lados fora de Porto Alegre. Acho que pode servir de exemplo pra outras pessoas... pra quem usa... O que eu passei... o que eu não quero que os outros passem.
No mais recente levantamento da Fasc, em março, 267 crianças e adolescentes foram encontradas perambulando pelas ruas da Capital, das quais 91 dormiam ao relento. Depois de nove anos engrossando as estatísticas, há 11 meses Felipe não faz mais parte delas.
VÍDEO: veja o que aconteceu um ano depois da primeira reportagem
Leia mais:
Parte 1: Na escola
Parte 2: A casa própria
Parte 3: Uma nova fuga