- Ainda falta o outro candeeiro - diz Telmo de Lima Freitas, ao comentar o olho recém-operado da catarata.
Um dos mais representativos nomes da música regionalista, Telmo completa 80 anos no próximo dia 13. Entre conversas e dedilhadas no violão e na gaita, os candeeiros dele continuam luminosos.
Telmo recebe ZH em seu galpão, na chácara onde mora com a mulher, a advogada Iara Peres Cardoso Freitas, em Cachoeirinha. Ele é tão desenvolto como contador de histórias quanto como compositor, autor de algumas das músicas mais universais do gauchismo: Esquilador, Prece ao Minuano, Prenda Minha e Nesga da Noite.
O galpão mais parece um museu: cada objeto que se acumula pelos cantos e paredes - selas, arreios, pelegos, indumentárias - está impregnado de histórias. Volta e meia, acometido por inspiração à beira do fogo, ele se apressa em pegar um caderno surrado, em que registra poemas e canções.
- Sou uma vertente - afirma, e agradece a Deus.
Prestes a virar octogenário, com a coluna comprometida por dores ("O nome é até bonito, neuropatia"), passa os dias cuidando dos bichos: o cavalo Odin, que deu ao filho Kiko Freitas (aclamado baterista, integrante da banda de João Bosco), as galinhas, o burro Biguá e a cachorrada numerosa.
- Aqui, lembro da chacrinha humilde em que me criei - diz, referindo-se à propriedade no bairro são-borjense do Paraboi.
Dos irmãos e irmãs, o último, Adão, "atendeu ao chamado do nosso Patrão maior" recentemente. Dos amigos, muitos já se foram. Enquanto mateamos, fala de Rui Biriva, que conheceu ainda criança graças à amizade dos pais. Tem memórias boas do truco que jogava com gigantes como Jayme Caetano Braun, quando o jovem enfermeiro Telmo veio morar na Capital, em 1957, em uma peça na Rua João Manoel - antes de trilhar carreira na Polícia Federal, até hoje motivo de orgulho para ele.
A música de Telmo leva o passado ao futuro
Telmo segue praticando a hospitalidade herdada do pai em seu galpão, onde gosta de receber outros chegados: os "irmãos" da família Fagundes, os parceiros Luiz Carlos Borges, Elton Saldanha e Vinícius Brum, a nova geração de músicos como Pirisca Grecco e Érlon Péricles, que têm nele uma referência.
- Trago uma missão, porque tenho respeito por todas as coisas antigas. E não é para mim, que vou fazer 80 anos. O que colhi é essa fraternidade maravilhosa da moçada.
Admirador do trabalho de Paixão Côrtes e Barbosa Lessa por terem cunhado o tradicionalismo, Telmo lamenta os rumos do movimento. Para ele, parte da geração que deveria praticar as tradições perdeu interesse pela cultura gaúcha.
- Hoje, a gurizada está muito preocupada com a música, mas não conhece as coisas do campo. Tem gente que gosta de Esquilador e não sabe o que é descascarrear (remover os excrementos que ficam aderidos à lã da ovelha antes da tosa). Ninguém pode gostar daquilo que não conhece - queixa-se.
O jornalista Renato Mendonça, que entrevistou Telmo, Paixão Cortes, Nico Fagundes e Adelar Bertussi para o livro Pilares da Tradição, rememorou certa vez, ao escrever sobre a Califórnia da Canção, um ensinamento do payador argentino Atahualpa Yupanqui: "O artista deve estar um passo à frente de seu povo, só um passo, para que possam segui-lo". Em algum lugar, a sina de Atahualpa encontra a de Telmo.
- O trabalho do Telmo é de uma resolução estética muito peculiar. Essa coisa de como a tradição tem de cumprir o rito de trazer do passado para o futuro - diz o músico Vinícius Brum.
Para comemorar as oito décadas, Telmo repetirá o ritual de receber família e amigos para assar um boi, criado no campo que arrenda para os lados de Glorinha. Para acompanhar a carne, bom trago e, principalmente, conversa e música.
Um aparte entre amigos
Ao longo de décadas dedicadas à música, Telmo registrou suas canções em quase uma dezena de discos, entre vinis e CDs.
Diz que não gravou tudo o que gostaria e se mostra ressentido com um amigo, presidente de uma gravadora, que lançou muitos trabalhos seus - nos últimos anos, ele teria colocado no mercado material de Telmo sem consultá-lo.
- Sempre que me ligavam pedindo, eu autorizava - explica. - Amizade é uma coisa de olho no olho. Ninguém é obrigado a ser meu amigo, mas, depois que existe a amizade, não se pode truncá-la.
Em seu galpão, recebe velhos e novos companheiros. O músico Érlon Péricles diz visitá-lo com frequência e vem gravando e inscrevendo canções inéditas do "tio Telmo" nos festivais.
- Faz um ano que estou atrás de uma vanerinha de que eu gostei para burro, e ele está me cozinhando - brinca.
O disco mais recente de Telmo é Aparte, coleção de canções de toda sua carreira. Refletindo a visão de mundo do autor, é um trabalho entre amigos e família. Além de músicos como Joãozinho Índio, Luiz Carlos Borges e Paulinho Pires, participam da produção Cristiano Scherer, a filha Ana Elisa e o filho Kiko Freitas - de quem Telmo esteve afastado por anos, e que, em Aparte, gravou pela primeira vez sua bateria e percussão em um trabalho do pai.
Uma vida guapa
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