Favorito ao Oscar e ao mesmo tempo surpresa da temporada, O Artista é encantador. O filme que estreia hoje, no entanto, exige paciência do espectador: trata-se de um longa em preto e branco, sem diálogos e com música onipresente - um objeto estranho em meio à produção do século 21.
A produção é francesa, mas O Artista foi rodado nos estúdios de Los Angeles, e as cartelas nas quais se leem os diálogos são escritas em inglês.A história é a do romance entre um astro decadente dos filmes mudos (Jean Dujardin, o ator do ano, disparado) e uma estrela em ascensão a partir do advento do cinema falado (Bérénice Bejo, igualmente ótima). Metáfora banal, porém,que veio a calhar para a Academia de Hollywood em tempos de 3D,IMAX e triunfo da era digital: ou você se adapta às novas tecnologias ou perde o trem da história. A sacada do diretor Michel Hazanavicius, 44 anos e apenas um outro longa lançado no Brasil (Agente 117, de 2006), foi falar sobre o futuro recorrendo a um formato que remete ao passado mais remoto da indústria.
Para "entrar" em O Artista é preciso fazer uma limpeza no HD interno, esquecer efeitos especiais e quaisquer registros contemporâneos e se permitir um encantamento mais primitivo, quase instintivo. O trabalho de Hazanavicius não aspira profundidade: seu charme está nas associações claras com clássicos de Hollywood (leia ao lado), nos personagens facilmente decifráveis (mas muito sedutores) e em inserções apelativas como as do cãozinho Uggie (o melhor amigo do protagonista).
O personagem de Dujardin se chama George Valentin. Além da referência a Rodolfo Valentino, grande nome da então incipiente indústria cinematográfica, foi inspirado em atores como Douglas Fairbanks - assim como Peppy Miller (Bérénice Bejo), a estrela dos novos tempos, teve sua composição moldada a partir da imagem, entre outras, de Mary Pickford. Não é preciso conhecê-los para se comover com seus encontros e desencontros: até pela falta de costume do público com o formato - o último longa sem diálogos a ganhar status semelhante foi A Última Loucura de Mel Brooks, de 1976 -, Hazanavicius fez um filme acessível, que diverte facilmente quem se permitir embarcar em sua proposta.
Os figurinos maravilhosos, a reconstituição de época impecável e a trilha sonora excessiva porém cheia de boas sacadas - preste atenção aos ruídos na cena da conversa na escadaria - enriquecem a fruição. Mas não escondem as limitações
dramáticas do filme. A ausência de camadas de compreensão evidencia o quanto O Artista é calcado numa moral óbvia, apesar da redenção ao final - que, no fim das contas, também é o oposto do que poderia ser classificado como surpreendente. Veja o filme, O Artista vale a pena. Mas esteja preparado para algo,além de diferente, um tantinho limitado.
REFERÊNCIAS CLÁSSICAS
Cantando na Chuva (1952): assim como O Artista, conta uma história de amor entre atores de Hollywood que tem início em 1927, em meio à transição do cinema mudo para o falado. A sequência final de dança de O Artista foi gravada no estúdio em que Debbie Reynolds e Gene Kelly ensaiaram para Cantando na Chuva.
Nasce uma Estrela (1954): outra história quase idêntica de ascensão da jovem estrela (Judy Garland) e decadência do astro que a ajudou (James Mason). Grande Hotel (1932): Numa de suas "falas", Peppy Miller repete frase marcante da bailarina vivida por Greta Garbo.
Crepúsculo dos Deuses (1950): Norma Desmond (Gloria Swanson), a estrela decadente da obra-prima de Billy Wilder, foi uma das maiores inspirações na composição de George Valentin.
O Picolino (1935): pelo menos um número de dança emula o filme com Fred Astaire e Ginger Rogers.
Cidadão Kane (1941): a cena do café da manhã tem planos idênticos aos do maior clássico de ascensão-e-queda.