Alguma coisa acontece no coração da música brasileira. Gal Costa e Caetano Veloso surpreendem com um disco baseado em música eletrônica, reeditando, mais de 40 anos depois, a parceria do álbum Domingo, de 1967. Chico Buarque teve seu mais recente disco considerado um dos melhores de 2011, lotando teatros em diversas capitais do país.
A geração que praticamente definiu a sigla MPB nas décadas de 1960 e 70 segue relevante na cena musical brasileira. Em 2012, a longevidade artística desta turma será celebrada com os aniversários de 70 anos de cinco grandes nomes: Jorge Ben Jor (22/3), Gilberto Gil (26/6), Caetano Veloso (7/8), Milton Nascimento (26/10) e Paulinho da Viola (12/11).
Outros nomes chegarão em breve à mesma marca - em 2012, Chico Buarque completará 68 anos, e Gal, 67 (a mesma idade que Elis Regina teria hoje). O que torna os cinco setentões uma referência tão presente para o público ainda hoje? Que discos mostram sua evolução? E como essa influência chegou aos artistas das décadas seguintes?
Geração de ouro
Foi difícil sobreviver a João Gilberto. O que viria depois da revolução provocada por sua voz e seu violão? Se o balanço da bossa representou a modernização da música brasileira, estabelecendo um padrão duro de ser superado, também serviu de catalisador de uma outra mudança. Artistas do jazz, que encantavam os brasileiros, agora corriam atrás do repertório e da companhia de Tom Jobim e sua turma.
Foi nesse contexto que despontou, na década de 1960, uma geração que provocou uma abertura radical na estrutura hermeticamente fechada da bossa nova. A explosão lançou partículas para todos os lados. Jorge Ben Jor (à época Jorge Ben) trocou o violão pela guitarra, misturando samba, funk americano e filosofia medieval. Criou uma síntese que deu origem ao samba rock, onde beberam artistas como Mundo Livre S/A, Nação Zumbi e Seu Jorge. Gilberto Gil uniu Luiz Gonzaga e Jimi Hendrix. Adicionou o reggae de Bob Marley e foi uma das figuras de frente da Tropicália. A seu lado estava Caetano Veloso, que amava os Beatles e a música romântica. Leitor dos poetas concretistas, juntou vanguarda e música popular.
Enquanto isso, em Minas Gerais, o carioca Milton Nascimento era figura de proa do Clube da Esquina, turma de fãs da nouvelle vague e do jazz que, assim como a Tropicália, também tinham um projeto de música brasileira. Acrescentando música de igreja, canção latino-americana e a cultura da África, Milton se tornou um artista de melodias, harmonias e letras apuradas. Correndo por fora, Paulinho da Viola se manteve fiel à forma do samba. Modernizou a tradição com a mesma discrição de seu canto e conferiu uma clássica atemporalidade ao cavaco, ao pandeiro e ao tamborim. Suas gravações nunca soaram tão atuais como hoje.
Em 2012 estes cinco artistas completarão 70 anos. Mas o que explica a singularidade desta geração? Para o jornalista e crítico Tárik de Souza, a qualidade artística não é a única razão:
- As gerações posteriores foram cada vez mais privadas de espaço na televisão. Na década de 1960, os programas de maior audiência eram de música. Esse diálogo entre artistas e público foi interrompido a partir dos anos 1970. Um dos motivos é que os músicos eram, em sua grande maioria, adversários da ditadura. Outro aspecto é que a televisão começou a investir em uma programação com retorno mais imediato e lucrativo: as novelas. Hoje, há uma geração grande e significativa aparecendo, mas você não os vê na televisão aberta. Para esse público, é como se a MPB tivesse estagnado no tempo.
O músico e jornalista Arthur de Faria observa que, no plano da criação artística, a geração dos anos 1960 foi estimulada por um tempo de mudanças, como havia ocorrido, em outros termos, na década de 1930 com Noel Rosa, Ary Barroso e Carmen Miranda. Assim, Caetano, Gil e companhia viveram o despertar de novas utopias, embaladas no plano internacional pela paz, pelo amor e pelo rock. Não é coincidência que dois ilustres estrangeiros - o britânico Paul McCartney e o americano Lou Reed - também completarão 70 anos em 2012.
- Os brasileiros estavam sintonizados com a evolução do pensamento mundial - diz Arthur. - Chico Buarque era filho de Sérgio Buarque de Holanda, tinha trânsito no Exterior. Os tropicalistas estavam ligados à poesia concreta e à música de vanguarda, que também eram dados internacionais. Essa geração dos anos 1960 representou uma abertura como não havia ocorrido até então na MPB. A característica de sintetizar diferentes músicas em um mesmo disco, como reggae, samba e formas híbridas, é um fenômeno brasileiro. Nos Estados Unidos, não existe isso. Ou você faz pop, ou rhythm & blues, ou jazz, e assim por diante
Fica a pergunta: cinco décadas depois, como está a força criativa destes artistas? Teriam eles conseguido se reinventar nos novos tempos?
- Essa geração não envelheceu bem - afirma Celso Loureiro Chaves, músico e professor da Ufrgs. - Muitos deles têm uma indiscutível tendência a se tornarem caricaturas de si mesmos. E, quando se percebe que eles fazem movimentos em direção à inovação, com parcerias inusitadas ou mudança de repertório, fica-se a perguntar se o desejo de renovação é autêntico ou se é apenas um prestar contas ao avanço do tempo. Os intérpretes deram-se melhor no envelhecimento, mais do que os compositores.
Vitor Ramil, artista declaradamente influenciado por Caetano Veloso, Milton Nascimento, Egberto Gismonti e Chico Buarque, defende que os artistas daquela geração "continuam compondo com qualidade":
- Aquela geração pode ser explicada por uma conjunção de fatores. Muitos talentos individuais surgiram em uma mesma época. Também foi um tempo em que a indústria fonográfica investia na carreira dos artistas. Não eram grandes vendedores de discos, faziam uma música sofisticada, mas lançavam um álbum por ano. Artistas que fazem sucessos para tocar no rádio ou na novela podem entrar em decadência. Já aqueles que têm sua vida baseada na qualidade nunca entram em decadência. É natural que mude sua relação com a música e com o público, mas segue sendo uma relação baseada na expressão, na criatividade.
DE ONTEM E DE HOJE
CAETANO VELOSO:
Caetano Veloso (1967)
Com uma capa psicodélica, o primeiro disco solo de Caetano lançava as bases da mistura de referências desenvolvida nos discos posteriores: o manifesto Tropicália, a inovação da guitarra na MPB em Alegria, Alegria e o portunhol revolucionário de Soy Loco por ti, América.
Cê (2006)
Talvez o artista daquela geração que mais soube se reinventar, Caetano reuniu um power trio (guitarra, baixo e bateria) e gravou um grande disco à luz das bandas dos anos 2000, em uma reunião de MPB e rock que ecoava um de seus primeiros trabalhos, Transa (1972).
JORGE BEN JOR
Samba Esquema Novo (1963)
Quando Ben Jor (na época, ainda Jorge Ben) apareceu com este disco, era nítida a influência de João Gilberto, mas já estava presente o espírito de renovação que levaria ao samba rock. Estão aqui algumas de suas composições mais representativas, como Mas que Nada e Chove, Chuva.
Reactivus Amor Est (Turba Philosophorum) (2004)
Primeiro disco de inéditas em nove anos, é uma prova de que o artista ainda mostra uma vitalidade semelhante à de trabalhos memoráveis como Jorge Ben (1969), A Tábua de Esmeralda (1972) e África Brasil (1976). Os alquimistas e os filósofos medievais não o abandonaram.
MILTON NASCIMENTO
Clube da Esquina (1972)
Jazz, música africana, bossa nova, Beatles e a nouvelle vague são referências do grupo de artistas de Minas Gerais conhecidos pelo título deste disco, que teve um segundo volume em 1978. Testemunho de uma geração, o trabalho conta com Cais, O Trem Azul e Paisagem da Janela.
... E a Gente Sonhando (2010)
Desde sempre o principal nome do Clube da Esquina, Milton olha para trás sem saudosismo com um trabalho em que apresenta, em composições inéditas e regravações, uma novíssima geração de músicos recrutados em Três Pontas, cidade no sul de Minas Gerais onde o artista foi criado.
GILBERTO GIL
Expresso 2222 (1972)
Primeiro disco de Gil lançado após a volta do exílio em Londres, tornou-se um clássico da MPB. A música-título virou até nome do camarote do artista no Carnaval de Salvador. Entre as faixas estão O Sonho Acabou e Oriente, regravada por Elis Regina no ano seguinte.
Fé na Festa (2010)
Homenagem a Luiz Gonzaga e à música do nordeste, o disco (seguido por um registro ao vivo em 2011) reverencia uma das principais influências de Gil desde o início da carreira. Destaque para o diálogo com as novas gerações em Lá Vem Ela, composta em parceria com Vanessa da Mata.
PAULINHO DA VIOLA
Foi um rio que passou em minha vida (1970)
Segundo disco solo do artista, apresenta a síntese do samba moderno e atemporal: a batucada (que atravessou a bossa nova incólume), o canto suave e as letras sofisticadas. A versão lançada posteriormente em CD traz Sinal Fechado, célebre incursão pela canção mais experimental.
Paulinho da Viola _ Meu Tempo É Hoje (2003)
Trilha sonora do documentário dirigido por Izabel Jaguaribe, faz um apanhado da carreira, com regravações e duetos. Nada de novo: Paulinho da Viola continua atual, como na música do título, de Wilson Batista e José Batista: "Eu sou assim/Quem quiser gostar de mim/Eu sou assim".
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PARCERIAS:
* A parceria musical entre Caetano Veloso e Gilberto Gil é um capítulo à parte. Além das inúmeras composições em coautoria e das gravações que cada um realizou de composições do outro, os registros fundamentais começam pelo álbum referencial Tropicália ou Panis Et Circensis (1968), com outros artistas que marcaram o movimento. O disco ganhou uma sequência 25 anos depois, com Tropicália 2 (1993). Vale conferir as gravações ao vivo Barra 69 (1972) e Temporada de Verão (1974), este com Gal Costa. Também com Gal e Maria Bethânia, Caetano e Gil gravaram o histórico Doces Bárbaros (1976), que inclui a faixa Fé Cega, Faca Amolada (Milton Nascimento/Ronaldo Bastos). O quarteto tem sua trajetória representada nos filmes Os Doces Bárbaros, dirigido por Jom Tob Azulay, sobre o show de 1976, e Outros (Doces) Bárbaros, de Andrucha Waddington, que registra o reencontro de 2002 (ambos disponíveis em DVD).
* Gilberto Gil e Milton Nascimento lançaram, em 2000, o disco Gil & Milton, com parcerias entre os dois (Duas Sanfonas, Trovoada, entre outras), uma composição de Jorge Ben Jor (Xica da Silva) e de outros autores, como Fito Paez, Beatles, Ary Barroso e Luiz Gonzaga.
* Caetano e Milton compuseram Paula e Bebeto, As Várias Pontas de uma Estrela (respectivamente dos discos Minas, de 1975, e Ânima, de1982, ambos de Milton) e A Terceira Margem do Rio, de Circuladô (1991), de Caetano. No disco Araçá Azul (1972), Caetano cria uma uma experimentação sonora que cita Cravo e Canela, de Milton e Ronaldo Bastos. Em 2005, os dois realizaram, pela primeira vez, uma série de shows juntos, interpretando canções americanas e composições deles para cinema, como a parceria da trilha do filme O Coronel e o Lobisomem, de Maurício Farias, daquele ano. A trilha foi lançada em CD.
* Caetano gravou diversas músicas de Ben Jor como Jorge da Capadócia (em Qualquer Coisa, de 1975), Olha o Menino (em Bicho, de 1977), Quem Cochicha o Rabo Espicha (em Muito, de 1978) e Zumbi (em Noites do Norte, de 2000), além de citá-lo em letras de canções como Fora da Ordem (em Circuladô, de 1991) e O Conteúdo, do disco Temporada de Verão, com Gal e Gil. A canção Não Enche, do disco intitulado Livro (1997), de Caetano, é uma referência à música Si Manda, de Ben Jor (do disco O Bidú - Silêncio no Brooklin, de 1967), que exerceu grande influência para Caetano e Gil no projeto da Tropicália. Por sua vez, Ben Jor homenageia o amigo na música Cae Cae Caetano, do disco Alô Alô, Como Vai? (1980).
* Em 1975, Gilberto Gil e Jorge Ben Jor gravam o disco Ogum Xangô, com nove canções em um espírito jazzístico de improviso.
* Milton Nascimento gravou Mas que Nada, de Jorge Ben Jor, no disco Crooner (1999).
* Paulinho da Viola cantou a canção Que Maravilha, de Ben Jor, em dueto com Toquinho (coautor da composição) no disco ao vivo Sinal Aberto (1999). Caetano gravou Tudo se Transformou, de Paulinho da Viola, gravação rara disponível na caixa Caetano Veloso 67 - 74.