Em busca de histórias curiosas e personagens marcantes, a série Beleza Interior retrata todos os sábados de 2011 peculiaridades de municípios gaúchos. Hoje, uma visita a Santa Cruz do Sul revela que a arte de manejar uma navalha está se tornando raridade no Estado.
Se tiver de escolher entre ver a neve ou a banda, optará pela banda, sem dúvida. Franciane Borges, 10 anos, é a caçula do grupo marcial da Escola Estadual Conde de Afonso Celso. Toca caixa ao lado de 32 colegas, da 5ª a 8ª série. Tem um riso ladeado de covinhas, próprio de tímida recentemente confiada a uma missão especial.
- Acho que a neve poderia servir de instrumento - brinca, para logo se envergonhar mais um pouco.
Tem lógica: o céu branco se assemelha a um tambor. É início de julho, e Franciane já está treinando para o desfile de 7 de setembro. Com dois meses de antecedência. Gente prevenida? Capaz! Não há nada mais importante na pequena e gelada Bom Jesus, terra de 11,5 mil habitantes, a 238 km da capital gaúcha, nos Campos de Cima da Serra. A trupe marcha de noite pela Avenida Manuel Silveira de Azevedo, onde será o palco da apresentação das três escolas do município. Disposta em cinco filas, interrompe o trânsito reproduzindo a trilha do filme A Pantera Cor-de-Rosa.
A perda de tempo soa estranha para moradores de Porto Alegre como eu, mas absolutamente normal aos filhos do Interior. Os motoristas não reclamam, sequer buzinam, compreendem o benefício terapêutico do triângulo, do tarol, do bumbo e do surdo. O pessoal assiste à movimentação pela janela com reverência. Alguns não controlam a nostalgia ou a corujice, e aplaudem.
- Ai, me dá um aperto no coração, é uma maneira de amar de novo a menina que fui - desabafa Neusa Monteiro Costa, 57 anos, uma das que esperam a banda passar.
Os instrutores são ex-alunos. Não suportaram o exílio das cadências e pediram para voltar na condição de voluntários. Dionathan Silveira, 17 anos, é o que segura a baliza, sopra o apito e põe em ordem a rapaziada.
- Não preciso gritar, o respeito vem da emoção.
Kaiube da Silva, 14 anos, concorda com o professor. Finge coriza ao falar. No fundo masca chiclete para não ser contagiado pelo choro. Sua carência some com os golpes agudos da percussão.
- Aqui é o único momento que recebo elogio durante o dia.
A banda atravessa as principais ruas do Centro até desembocar nas escadarias da Paróquia Senhor Bom Jesus.
A diretora da escola Carli Varela de Oliveira, 46 anos, entusiasma as atividades fora do ginásio, das 17h30min às 19h30min.
- É bom que os pais vejam seus filhos empenhados, para tomar vergonha e não faltar no Dia D.
Ela diz que a música é a recuperação de conceito que realmente funciona. Desperta a criatividade dos estudantes com notas baixas.
- Quando alguém está mal, se entra na banda, melhora. Onde se assimila a força do grupo: se um desafina, todo mundo erra. Aprende-se a cuidar do outro.
Tento me aproximar de Kathleen Tais da Silva, 14 anos, menina tímida que toca caixa lá atrás no agrupamento. Faço perguntas, e ela não responde. Descubro que ela não escuta nada: é portadora de necessidades especiais auditivas. Sua voz é bonita, doce, ela lê os meus lábios.
- Sigo a vibração. Meus olhos tremem por dentro com as batidas - explica.
Tem lógica: as pálpebras são sensíveis ao som, assim como sensíveis aos flocos de gelo.
- A banda inicia no inverno e termina no fim da estação. Aparecemos uma vez por ano no desfile. Como a neve em Bom Jesus - compara o instrumentista Jemerson Camargo, 18 anos.
Trilha para o inverno
Beleza Interior: Para ver a banda passar
Nas ruas da fria Bom Jesus, banda colegial ensaia para os desfiles de 7 de setembro
Fabrício Carpinejar
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