A Cidade de Deus é de ouro também. Rafaela Silva, a menina garimpada na favela da Zona Oeste cuja história de crime virou filme e ganhou o mundo pelas lentes de Fernando Meirelles, se tornou nesta segunda-feira a melhor judoca do mundo na categoria leve (até 57kg). O wazari na mongol Sumiva Dorjsuren foi um golpe também para acordar o Brasil.
–Mostrei aqui que uma pessoa saída da favela pode, sim, se tornar campeã . A lição que fica para as crianças é que, se têm um sonho, que batalhem. Assim podem alcança-lo. Pode demorar, eu não consegui há quatro anos. Mas agora alcancei – disse Rafaela, ainda ofegante, minutos depois de sair do tatame consagrada.
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A história de Rafaela é comum à da esmagadora maioria das crianças criadas em situações desfavoráveis. A diferença é que a dela mostra o quanto esse roteiro quase predeterminado é possível de ser alterado. Rafaela foi descoberta na Cidade de Deus aos oito anos. Ela e a irmã, Raquel, foram colocadas três anos antes pelos pais para lutar no projeto social Reação, criado pelo ex-judoca Flávio Canto. Em vez da rua e de seus perigos e tentações, investiriam no tatame as energias gasta em brigas com os vizinhos.
Quando viu aquela agressividade toda diante de seus olhos, o técnico Geraldo Bernardes, o homem que havia lapidado Canto e o transformado em medalhista olímpico, percebeu que estava diante de um diamante. Bastava lapidá-lo.
Rafaela foi crescendo e ganhando títulos conforme subia de categoria. Aos 16 anos, foi disputar o Mundial Júnior da Tailândia para atletas de 17 a 19 anos. Ganhou e se deu conta de que o que o vaticínio de Geraldo lá na infância estava certo. Ela poderia, sim, ser uma campeã olímpica.
O sonho quase foi interrompido em 2012, quando acabou desclassificada na segunda luta, contra a húngara Hedvig Karakas. Nas redes sociais, ouviu um recado carregado de racismo no Twitter. Não segurou e reagiu. Pensou em largar tudo. Mas outra vez o Reação apareceu na sua vida. Uma psicóloga que trabalhava no instituto a afrontou:
– Você se imagina daqui a dois anos fora do judô?
Rafaela nem pestanejou. Voltou ao tatame e ganhou o Mundial de 2013, no Maracanãzinho. Pois o Rio, sua casa, serviu de palco outra vez para a consagração, em 2016. Na primeira luta, venceu a alemã Myiram Roper. Na segunda, passou pela sul-coreana Jandi Kim. Nas quartas de final, Rafaela exorcizou seu fantasma, a húngara Karakas, algoz de 2012, Na semifinal, veio o combate mais duro, decidido no golden score, com a romena Corina Carprioriu.
Depois dessa vitória, o técnico Mário Tsutsui respirou aliviado. Temia a final com a japonesa Kaori Matsumoto, que ficou com o bronze. Mesmo sendo líder do ranking mundial , a mongol dava brechas que Rafaela poderia aproveitar. E foi o que ela fez antes de correr para o setor da torcida em que estava sua família. E alguns egressos da Cidade de Deus. Que na moderna Arena Carioca virou a Cidade do Ouro.
*ZHESPORTES